sábado, 18 de junho de 2022

Morra Marta, que estamos fartos

José Meireles Graça

Ele é mortos inexplicáveis para nossa perplexidade e outros explicáveis para nossa indignação, crianças que morrem no parto por falta de assistência, grávidas que andam de porta em porta de hospital, uma sensação geral de desnorte e um corrupio de opiniões e medidas.

Que medidas? Na AR foi dito (suponho que pela ministra Temido, não fui conferir), num debate em que Costa não esteve presente por causa da habitual ausência no estrangeiro sempre que a argolada governamental é demasiado evidente: "Vamos criar uma Comissão para assegurar o acompanhamento ao nível estrutural dos Planos de Contingência e efectivar a coordenação da resposta a implementar no âmbito dos serviços e meios".

Foto: Mário Cruz/Lusa

Nem mais: Vamos pé-ré-pé-pé efectivamente na medida em que.

Entretanto, Costa deu o mote: o SNS tem problemas estruturais. E a detestável Marta e os aguadeiros do PS na comunicação social esforçam-se por os elencar, aos bloqueios estruturais: obstetras que não há em número suficiente, pessoal médico que não quer “dar horas” por serem miseravelmente pagas, organização deficiente dos serviços, médicos que se reformam, enfermeiros que vão trabalhar para o Reino Unido, Ordem dos Médicos que escalona não sei quê assim mas devia escalonar assado, acesso à especialidade mais condicionado do que o que deveria, médicos que dão à sola para o sector privado, insuficiência de meios materiais nuns sítios e desperdício noutros... a lista é infinita e, é claro, a esquerda demente tem na manga a solução: chuva de milhões, restrições para o sector privado, no limite mobilização forçada de médicos e instalações privadas.

Milhões, parece, tem havido, é o que diz Medina (incidentalmente cravando uma saborosa adaga nos costados da camarada) e faz parte do argumentário oficial do PS. E, sem ir verificar, acredito: Mesmo aplicando a taxa de redesconto do banco da aldrabice, necessária no que toca a afirmações oriundas daquelas partes, o ponto não tem sido muito contestado.

Tem havido mas não o suficiente. Nunca aliás o dinheiro foi suficiente para a Saúde, nem nunca será. A solução imediata para o problema, não apenas o dos escândalos com parturientes nestes dias mas o, ainda mais grave, dos atrasos nas consultas e intervenções cirúrgicas (v.g. esta comovente história do meu camarada de blogue), seria o transferir sistemático dos atrasados, dentro de limites razoáveis, para o sector privado. Prática que, se passasse a ser mais volumosa do que é, rapidamente originaria uma expansão daquele sector – precisamente o que o PS em geral, e a Martinha e os seus camaradas comunistas em particular, não querem.

Mesmo que quisessem, porém, o céu não é o limite. Este está naquele módico de equilíbrio orçamental que os nossos patrões europeus impõem. Patrões benevolentes, aliás: que se o país se financiasse sem a almofada do BCE o celebrado SNS rapidamente passaria do pacífico estatuto que detém de grande conquista de Abril para o de grande equívoco do mesmo prestigiado mês, por não haver dinheiro nem para papel higiénico.

Que o SNS é uma velha gaiteira cujos melhores dias já lá vão não oferece dúvidas: o escândalo são partos sem assistência médica? Mas quê, acaso estão a nascer muitos bebés, acabou a crise demográfica? Não acabou: se nascessem tantos como na década de 50 muitos veriam (como eu) a luz do dia em casa, ou mais provavelmente dentro de um táxi, a fazer o périplo dos serviços encerrados, na hipótese de eles ou também as mães não esticarem logo ali o pernil sacrificado às ideias tolas que, com o voto, a comunidade consagrou.

Poderia o SNS aguentar-se indefinidamente como está, ainda que com as mesmas queixas crescentes que tem, por exemplo, o do Reino Unido? Poderia sim, se o país não tivesse um crescimento lânguido ou se não houvesse a nuvem da dívida. Duas realidades que nada indica venham a desaparecer até onde a vista alcança.

A ministra vai de vela, Sérgio Sousa Pinto já lhe passou uma guia que o establishment socialista, por espírito de preservação, acabará por adoptar. E com remendos daqui e dali o clamor público, de todo o modo uma fracção do que existiria se fosse um governo de direita a presidir ao descalabro, amainará.

Até à próxima crise ou à consagração na prática do padrão que se começa a afirmar: quem tem dinheiro (ou um sistema inteligente como a ADSE, cujos méritos nunca foram, mas deveriam ser, ponderados como alternativa ao sistema cediço que tem a generalidade da população) vai ao privado; e o SNS é para acidentes, se for a Urgência que estiver mais perto, ou para os pobres e para quem tiver cunhas.

A ideia da gratuitidade sempre foi um logro porque induz procura nem sempre necessária, exames nem sempre indispensáveis e gestão enviesada por não fazer análises de custo/benefício, num ambiente em que o sucesso  depende não da satisfação do cliente mas da aprovação da tutela; a transformação do médico em funcionário muta-o num burocrata da saúde, e ao paciente/cliente num utente; a absurda importância e o vozear incomodativo dos sindicatos de médicos traz para o espaço público a confusão entre a defesa de interesses corporativos e os dos doentes; e a ideia de que um serviço público essencial é poluído pelo lucro e pela concorrência não é mais do que a concepção anómala de que uma ilha socialista pode funcionar bem quando nenhuma sociedade integralmente socialista jamais o conseguiu.

É certo que há uma lenda, cara a pessoas de esquerda, segundo a qual a qualidade da gestão é independente da propriedade pública ou privada, o que se prova pelos numerosos casos de empresas privadas que, por erros de gestão, fecham. Mas não é concebível mercado sem concorrência, concorrência sem falências e eficiência na afectação de recursos sem lucro, propriedade e a pele em jogo – tudo o que não existe no SNS.

De modo que levantem alto o santinho com a imagem de Arnault, e, quando faltarem como já vão faltando os milhões crescentemente necessários para não regredirem os números que provam as brilhantes conquistas da engenharia daquele falecido pai da pátria agradecida, rezem muitas orações – a fé é que nos salva quando falta o antibiótico, o bisturi e os profissionais que os receitam e manejam enquanto sobra o atravancamento de pessoas atarantadas e esgotadas nos sítios onde se trata destas coisas.

Título e Texto: José Meireles Graça, Delito de Opinião, 18-6-2022

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-