terça-feira, 24 de maio de 2022

[Aparecido rasga o verbo] De vez em quando, como o joio e o trigo, o Azul e o Branco se misturam...

Aparecido Raimundo de Souza

DENTRO DO ESTOJO
sobre a carteira, dois lápis de cores diferentes discutem. Um deles, o Azul, à alta voz, imponente:
— A minha cor é mais bonita que a sua!
O Branco, como sempre, calmo e tranquilo:
— Seu convencido. Deixa de ser tolo. Eu, o Branco, sou mais querido e amado pela Aninha (Aninha é a dona de ambos os lápis) do que você.
O Azul, se impondo:
— Engano seu. Eu sou o preferido dela...
O Branco, fazendo cara de riso:
— É mesmo? Desde quando?
O Azul, cada vez mais nervoso:
— Desde o momento em que ela foi na papelaria com a mãe e me viu dentro da caixinha, entre meus doze irmãos.

O Branco, desdenhando:
— Seu sonso. Sonso e desengonçado. Se acha o tal.
O Azul, alfinetando:
— De fato, eu me acho. Aliás, eu sou o tal. Se você reparar os cadernos da Aninha, seja o de Matemática, o de Português, e até o de Inglês, perceberá que todos os desenhos que ela fez para ilustrarem as páginas, eu me sobressaio. Dou de dez a zero em você!
O Branco devolvendo o troco da desfeita, à altura:
— Você é um azul metido. Não passa de um desbotado, ou melhor, superado. Já o branco, ou o meu branco, melhor me expressando, está em tudo o que é cristalino... por onde passo, deixo tudo às claras e transparente. O branco mostra os podres do azul.

O Azul partindo, de novo, para a agressão:
— Você, seu branco azedo, se esquece que eu estou no topo. Sou o azul do céu infinito, o azul das águas do mar imenso. Sou, ainda, o azul da bandeira e também o azul da Esperança...
O Branco, escarniando da mancada do adversário:
— Alto lá. A Esperança não é azul. É verde.
O Azul tentando desconversar:
— Não mude o rumo da nossa prosa. O seu branco tira o brilho das coisas mais simples. Se você se olhar no espelho, perceberá que em face do descorado, ou da ausência de cor que deu origem às suas raízes, você se fez e se tornou anêmico e quase invisível.

O Branco, mostrando conhecimento de causa dentro daquilo que ponderava e guerreava:
— Olha só o coitadinho se fazendo de vítima. Cresça, moço. Meu branco está na alvura das nuvens, nos jalecos das pessoas que cuidam dos doentes nos hospitais, no açúcar que desfaz o amargo da vida, na maisena da papa dos nenéns, no sal que tempera os pratos mais sofisticados... igualmente nos refrigeradores (você, por acaso já viu uma geladeira azul?). Também estou no branco da neve que cai, nos cabelos dos longevos, na maioria dos carros que rodam aí pelas ruas e avenidas da cidade...

O Azul exasperado e prestes a partir para o campo das bofetadas:
— Não seja por isso: o meu azul está presente nas Araras azuis, nos Gaios azuis, nos Sapos-boi-azuis nas Garças azuis, sem falar que existe uma empresa aérea com aviões azuis cortando os ares deste Brasil imenso.

Faz uma pausa tomando fôlego e prosseguindo, como se fosse o rei da cocada preta:
— Me faço dativo nas campanhas do “Novembro Azul”, que conscientiza os homens a cuidarem do câncer de próstata... e um particular que tenho certeza, você nunca ouviu alguém mencionar: as crianças com autismo usam muito o azul em seus desenhos. Mudando o quadro, veja por exemplo, os times de futebol. O Grêmio de Porto Alegre é azul... as mulheres preferem vestidos azuis, sapatos azuis, lingeries azuis... quer mais? O Cruzeiro de Minas é azul. Não posso me esquecer que estou na crista da onda em canções famosas, como “Azul da Cor do Mar”, do Tim Maia, no “Azul” do Djavan, no “Todo Azul do Mar” do KLB...

O Branco, de novo com o mesmo sorriso esvoaçante no rosto, sem perder a serenidade esportiva:
— Acabou?
O Azul, colérico e bruscamente inflamado:
— Sim. Acabei...
O Branco querendo terminar com aquele papo furado e sem lógica:
— Você realmente se acha... agora tenho certeza, seu caipira de uma figa. Se prepare: vou lhe dar o troco. Suas proezas são legais e bacanas, não duvido. Em oposto, a sua cabecinha oca pode até se vangloriar, ou seu ego se imaginar o maioral, o intocável, todavia ouça o que vou dizer e guarde à sete chaves para nunca se esquecer... você alardeou ser música famosa, time de primeira linha, aviões, carros, o raio que o parta... porém, sempre há um porém, numa coisa, eu ganho de você. E ganho longe...

O Azul, zangado, descontrolado, fazendo gestos como se fosse desferir, sem mais delongas, tapas e safanões em seu contendor:
— Diga lá, seu Branco sem noção. Sou todo ouvidos. No que você me ganha, seu desmiolado banana?!
O Branco, aberto numa harmonia envolvente e fascinante, manda a paulada que (tem certeza), deixará o Azul sem saída, à beira de um ataque de fúria sem limites:
— Eu represento a coisa mais importante neste mundo. Maior que seus times, suas músicas, seus cantores, seus aviões... quando tiver um tempinho, pergunte à Aninha... assim que ela voltar do intervalo.
O Azul, cerrando os punhos e se enfadando, atrofinado e temeroso, sem saber como manter o diálogo à altura de um cavalheiro que sabe como pugnar pelos seus pontos de vista num clima cordial e sem aberrações desnecessárias, desabafa vencido:
— Não vou perguntar nada para ela. Quero saber de você. Fala logo, não estou com paciência...

O Branco, pondo, em definitivo, um ponto final naquele diálogo e deixando o Azul, de fato, sem ter o que argumentar, desfere o golpe de misericórdia:
— Saiba, meu jovem e querido Azul, eu represento, ou melhor, eu simbolizo e patenteio o retrato fiel e sem retoques, ao pé da letra, daquilo que toda a humanidade busca incansavelmente: a PAZ!

O Azul, rabinho entre as pernas, saindo de cena à francesa, se deixa ser tragado por cadernos e livros, borrachas e canetas esferográficas, enquanto o Branco se mantém quieto e húmil em seu canto entabulando prosa, desta feita com o Apontador e, obviamente, esperando que a Aninha retorne do recreio e tome o seu lugar na segunda parte da aula que logo deverá ser iniciada.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha no Espírito Santo. 24-5-2022

Anteriores: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-