terça-feira, 31 de maio de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Demônios eternos

Aparecido Raimundo de Souza 

QUANDO EU ERA PEQUENO, tinha um medo terrível da Cuca, que vovô João dizia, a toda hora, viria me pegar, se eu fizesse alguma coisa errada e me levaria dentro de um saco preto para um lugar muito distante. E eu fazia muita coisa errada, porque era criança e criança não tem o discernimento das pessoas adultas, de saber distinguir o que é certo e o que é errado, de diferenciar entre o feio e o ridículo, ou de separar o bem e o mal, como a maçã podre da fruta não estragada. E fazendo coisas erradas, entrava na “bainha do facão”, uma espécie de protetor de couro duro onde vovô João guardava um facão enorme, usado para cortar cana na vendinha onde comercializava pasteis, quibes, coxinhas e caldo de cana, e quando eu o tirava do sério, a tal bainha se transformava numa espécie de cinto que comia sem dó nem piedade por cima do lombo. Lembro que vovó Marta acordava muito cedo para fritar esses salgados (já preparados na véspera), para, às seis horas em ponto, a pequena portinha de ferro estar escancarada para o respeitável público e, vovô João conseguir aumentar o volume dos seus trocados nos bolsos. 

Morávamos em frente a um grupo escolar, onde, aliás, eu também estudava na parte da tarde. Na hora do recreio, seu Airão abria a porta de madeira e, nessa hora, um bando de meninos e meninas, entre afoitos e alegres, corriam a atravessar a rua movimentada para pegar um lugarzinho melhor na vendinha de meus avós. A maioria da garotada ficava do lado de fora, comendo sentada na calçada, porque não cabia todo mundo lá dentro. À noite, na hora em que fechavam, os dois velhinhos faziam a festa, e antes de ser servido o jantar, se recolhiam no quarto do casal, sentados num velho e desbotado canapé verde escuro contando um amontoado de moedinhas e notas. Depois separavam cada uma pelo seu valor correspondente, bem como a grana em papel e depositavam em pequenas latas de leite em pó. Só então, depois de cumprido esse ritual, se separavam. Vovô ia esconder o dinheiro atrás de uma velha estante, que havia no quarto de hóspedes nunca usado e vovó Marta seguia para a cozinha preparar o jantar. Geralmente o jantar se constituía numa suculenta panela de sopa com os mais variados tipos de legumes. Mas a tal da Cuca, meu Deus, essa praga povoava meus dias de manhã à noite. Me seguia pelos corredores, na sala de aula, me vigiava pelas esquinas e estava sempre por perto, prestes a dar o bote e me matar. 

O Orlando, um amiguinho meu, que estudava na sala ao lado, paralítico de nascença, se movimentava com a ajuda de dois paus de arrimo, e, praticamente, todos os dias, quando tocava a campainha para o intervalo, costumávamos trocar o lanche das nossas lancheiras. Ele falava, com o rosto tomado pelo pavor, que na sua casa havia um bicho “danado de medonho”, que seus pais apregoavam que “se não estudasse direito e repetisse o ano, ele seria entregue tão logo soubessem da notícia pelo boletim”. Esse ser pestilento, não outro senão o Saci Pererê, um menino mal encarado, filho do demônio, que andava pulando numa perna só e fumava um cachimbo comprido cheirando a enxofre. Com a Aninha, uma outra coleguinha de classe (que sentava do meu lado direito) não acontecia diferente. Aninha morava com uma tia chata, duas casas abaixo da minha. Não tinha mãe nem pai. Eles haviam morrido quando atravessavam o leito da via férrea, num acidente horrível, em cima da passagem de nível, a poucos metros da estação de Carapicuíba, envolvendo o carro de passeio onde viajavam e o Litorânea (um trem expresso, de passageiros), que cruzava a cidade, vindo da capital e seguia com destino à Presidente Venceslau. 

O bicho da Aninha, o Boi da Cara Preta. A simples menção desse troço a deixava em pânico, aos prantos e em estado de choque. Porém, o tempo passou. A infância cedeu lugar ao mundo adulto. Cresci, virei gente grande. Casei. Arranjei um monte de filhos e netos. Hoje, olhando para eles, percebo que a mesma história dos tempos dos meus avós, das tias e dos pais dos meus amiguinhos de infância continuam se repetindo, indefinidamente. E com certeza, serão eternos, movidos pelo medo e pelo ressentimento que cada um carrega dentro de si. Serão imortais, esses nascidos dos infernos de nossa alma, alimentados pelas línguas dos nossos entes queridos e amados, que ainda conseguem ressuscitar e fazer desses avantesmas de meia tigela, bichos de aparências indescritíveis, com sete cabeças e mil braços, invencíveis e indestrutíveis como os fantasmas que estão vivos e pulsantes dentro de nossos corações. A Cuca não vem pegar, o Boi da Cara Preta não vem assustar nem levar ninguém para lugar algum. Tampouco o Saci Pererê e tantos outros. Nada disso existe. Esses seres inexpressivos são figuras mitológicas, sem vida plena, frutos de mentes doentias que lhes deram vida e forma movidos por uma criação irrefletida e tacanha. 

O nosso horror, por eles todos, o nosso receio mórbido está bem aqui dentro do peito, escondido, pronto para entrar em cena a qualquer momento. Eu mesmo posso ser a Cuca, o Orlando o Boi da Cara Preta, a Aninha o Saci, ou vice-versa. Nós próprios criamos uma desinquietação congemina em torno de um “engenhoso mítico” que não existe e vivemos com ele, como se fosse uma doença incurável, um espectro nojento e asqueroso para o resto de nossas vidas. A Cuca não vai estar, jamais, espreitando quem quer que seja no final do corredor, nem o Saci Pererê entrará por uma janela que ficou aberta, como, igualmente, o Boi da Cara Preta não sairá correndo, desembestado, em volta da casa, intencionando levar, com ele, preso aos chifres, uma menininha linda que não quis dormir de luz apagada. Na escuridão do nosso quarto, somos nós próprios refletidos em carne e osso no espelho maligno do folclore advindo do terror, um ignóbil vil e capenga que se desfaz como na luz que, de repente, se acende e vem, também, de dentro de nós e se espalha como o sol mavioso e bonito, lá fora, por todo o infinito que o Criador nos deu de presente. 

Essas entidades todas têm a vida que lhes damos e respiram o ar que colocamos em suas narinas. Como fazia vovô João. Por isso se movimentam segundo nossas vontades. Esses bichos-papões que andam, à solta, pelos becos e guetos de nosso dia a dia, a amedrontar, hoje, nossos filhos e, amanhã, e certamente depois, tirarão o sossego e o fôlego de nossos netos e bisnetos, estão vivos dentro de cada um que os alimenta. No mesmo formato, estarão presentes em nosso caminho como aquela gigantesca árvore do mal fazendo uma sombra escura cair pesada por sobre nosso futuro. Precisamos, pois, cortá-la, para que não tenha mais vida em abundância. Arrancar de uma vez por todas, a raiz maligna que brota com mil tendões de dentro do chão e da terra que estão sob nossos pés. Exorcizar esses cramulhões de maneira que só restem deles uma lembrança longínqua, esquecida, apagada, atenuada no “para sempre”, ou num canto ermo da nossa memória. 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo. 31-5-2022 

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