domingo, 22 de maio de 2022

[As danações de Carina] Vestido de noiva

Carina Bratt

A ROSE é quase uma vizinha. Mora num prédio duas quadras abaixo do meu condomínio. Está vendendo um vestido de noiva. Segundo o anúncio colado na banca de jornais do seu Antero, “Sem uso. Urgente! Tratar pelo telefone (27) 9-8843-00-Bolinha Ó”. Lindo, maravilhoso, inigualável. Uau! Fico me perguntando o motivo da criatura estar se desfazendo de uma coisa tão cara. Não conheço a Rose, nunca a vi mais gorda, nem mais magra. O que me deixou intrigada, ‘Sem uso!’. O que passa na cabeça de uma pessoa eliminar de seus guardados uma peça que nunca foi usada?

Estranhei! Pensei em ligar para o telefone e indagar diretamente seus reais motivos de passar à frente essa galhardia (vestido de noiva, para euzinha, que sou leiga, é um negócio de ventura e opulência) somente usada em uma ocasião especial. Aí pensei com meus devaneios: o que diria a ela? Tenho onze anos e assim que a Rose ouvisse a minha voz saberia que sou uma menina. Na sequência, descobriria que o meu interesse não se redundava em outra coisa, senão o de ‘meramente especular’. Quem sabe, chateada, desligasse o telefone na minha linda carinha concluindo que entrei em contato mais para ‘tirar um pelo’, ou sacanear.

Se eu tivesse mais idade, ou andasse às vésperas de trocar alianças, argumentaria que o feitio de quem o confeccionou não bateu com o meu santo, embora tivesse dito e redito, várias vezes, ao estilista, como o queria, depois que ficasse pronto. Na esteira de ainda ser uma garota na flor da idade, um costume de noiva não iria me beneficiar em nada. Todas as minhas amigas têm a mesma faixa que eu, onze, quinze, logo, nenhuma de nós precisaria de uma indumentária desse porte. Pelo menos por agora...

A dúvida, entretanto, persistia: ligaria, não ligaria, mataria a droga da 'intrometidice', ou deixaria a coisa quieta e esqueceria, de vez, a loucura que me atormentava? Meu Deus! Essa enrascada do ‘por que?!’ não dava tréguas. Seguia firme e forte me atazanando a cabeça e deixando a minha paciência com os nervos à flor negra do desespero imaturo. O que fazer? Ir em frente? Indagar? Bem que gostaria! Porém não poderia. Apesar desse diabinho me agastando, carecia seguir até um desfecho que me acalmasse a alma esbugalhada. A praga da ‘enxeridação’ atrelada ao meu desejo mórbido de um desfecho lógico aflorara forte demais e martelava os meus neurônios

Me veio o despautério de pedir ajuda à amiga Carla. A Carla tem dezoito anos, e um espírito inquieto de trinta. Pronto. Resolvida a questão. Acionaria a Carla e fim de papo. Mandei vê. Passei o número do celular da tal da Rose e esperei para ver o que ela descobriria. Nosso papo foi rápido e rasteiro como o de alma atribulada à procura de reza:

— Carla, me faz um favor? Disca para o número que lhe enviei aí no seu WhatsApp e pergunta pra Rose porque ela está se desfazendo de um vestido de noiva novo que nunca foi usado. E a razão da urgência?
O legal da minha amiga Carla é que ela me faz alguns favores, eu também, quando me pede e não perguntamos os motivos. Passaram, a passos de tartaruga, quatro longas horas cravadas. Quando pensava em renovar a ligação de novo, Carla, finalmente, retornou:
— Fala, amiga. E aí?
— Sara, ela me falou que está vendendo o vestido por motivo de ‘força maior’. Indaguei qual seria a ‘força maior’ e ela me disse que comprou o vestido para uso próprio. Iria se casar...

Fez uma breve pausa e, em seguida, completou:
— Alguns dias antes do enlace, seu noivo veio a falecer num acidente quase em frente ao prédio onde ambos iriam morar. Estava vendo aqui, ela é quase sua vizinha. Se você der um espirro no seu banheiro, ela grita, ‘saúde’ da cozinha dela. Voltando ao acidente, um carro desgovernado, e, em alta velocidade, com um sujeito bêbado ao volante, trafegando na contramão pegou a moto do seu futuro consorte em cheio. Apesar do rapaz ter sido socorrido em tempo, não resistiu aos ferimentos, e, uma semana depois, veioa óbito.
— Nossa, amiga, que trágico!
— Também achei. Completando, Sara, ela me explicou que ficar com o vestido guardado, só lhe traria recordações e lembranças amargas:

— Meu Deus, coitada!
— Por essa razão, está se desfazendo do modelito. Mandou fotos em meu celular. Você precisa ver que gracinha. Vou encaminhar para que dê uma olhada. Salva aí e depois me fala o que achou...
— Carla, você me disse que pretende se casar. Por que não fica com ele?

— Pensei nisso, amiga. Conversando com a mamãe e com a minha avó, elas me falaram que comprar um vestido de noiva de quem iria beijar as mãos do padre e o futuro noivo bateu com as doze, traria um tremendo azar. Por conta, amiga, resolvi não arriscar. Vai que meu namorado... pronto, lhe mandei as fotos...
— Ok, amiga Carla. Beijos. Fica na paz.
— Você também, com Deus.

Título e Texto: Carina Bratt. De Vila Velha, no Espírito Santo. 22-5-2022

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Um comentário:

  1. Lindo texto. Parabéns. A cada novo título me surpreende. Você nasceu pra brilhar.
    Aparecido Raimundo de Souza
    Vila Velha ES.

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