Pelo preço que paga, o brasileiro deveria estar tendo uma das melhores, mais eficazes e mais confiáveis justiças do mundo. É o exato contrário
J. R. Guzzo
Imagine, por alguns instantes, um absurdo bem absurdo, multiplique por dois e eleve o resultado ao cubo. Muito bem — não importa o que você tenha imaginado, pode ter certeza de que no judiciário brasileiro já aconteceu coisa pior. Não se trata de uma questão de ponto de vista. É o que a realidade dos fatos prova, sem parar, à luz do sol e à vista de todos. Acaba de acontecer, mais uma vez.
Os deputados de Alagoas,
atendendo a pedidos feitos por gente que você já sabe muito bem quem é,
aprovaram o seguinte desatino: a partir de agora, os juízes e desembargadores
alagoanos receberão do erário estadual dois meses de “licença-remunerada”, ou
seja, terão pagamento em dinheiro vivo, a cada três anos em que ficarem no
serviço público. Dá R$ 60.000, a cada vez, para um juiz em começo de carreira;
se ele está há mais tempo na magistratura e ganha R$ 50.000 por mês, por
exemplo, já serão R$ 100.000 — e assim por diante. Nem é preciso dizer que
essas boladas são um plus a mais: os tais “três anos de trabalho”
incluem as férias (que já são de dois meses por ano) e os dias relativos aos
recessos judiciais de julho, dezembro e janeiro. O magistrado também poderá
optar pela licença, em vez do dinheiro; nesse caso, de três em três anos,
ficará quatro meses sem trabalhar e ganhando salário integral. E agora vem a
cereja no bolo (no bolo deles, claro) ou a notícia realmente ruim da história
toda: essa distribuição maciça de dinheiro público pode ser retroativa. Já se
calcula que haverá gente botando um milhãozinho no bolso.
Por
meio do “quinquênio”, o cidadão será roubado, a cada cinco anos, para pagar um
aumento salarial automático de 5% para todos os juízes
É um mergulho desesperado no subdesenvolvimento mais agressivo — uma ditadura africana de segunda categoria provavelmente teria vergonha de fazer esse tipo de mamata com os amigos do gângster que estiver ocupando a cadeira de ditador. A desculpa que arrumaram para dar algum tipo de explicação a essa tramoia é uma coisa triste: a “licença-biênio” serviria para “premiar” a dedicação dos magistrados que permanecem nos seus cargos — como se o problema da justiça de Alagoas fosse evitar uma possível demissão em massa de juízes, desmotivados pelo miserável salário inicial de R$ 30.000 por mês que ganham, fora os benefícios. O pior é que a decisão não diz respeito só a Alagoas. Como acontece com outras unidades da federação, Alagoas é um Estado-parasita: não gera receita suficiente para honrar suas próprias despesas, e tem de ser sustentado pelo desvio de impostos pagos por cidadãos de outros Estados brasileiros.
Quem estará pagando pela
farra, portanto, não é “o governo”, e nem o erário alagoano — é você mesmo, a
cada vez que liga o celular, acende a luz de casa ou põe um litro de
combustível na bomba do posto. Alagoas não ajuda ninguém. É apenas, do ponto de
vista da política, um exportador líquido de gigantes como Fernando Collor,
Renan Calheiros ou Arthur Lira, para ficar no resumo da ópera — ou de decisões
como a do “biênio” para os juízes.
O saque aos cofres públicos
feito em Alagoas vem se somar a outro despropósito em estado puro que acaba de
ser praticado nestes dias: a ressurreição do infame “quinquênio”, uma praga
extinta em 2005 e trazida de volta agora pelo Congresso, por pressão do
sindicalismo judicial que envenena de forma tão completa as relações entre o
judiciário e a sociedade brasileira. Por meio do “quinquênio”, o cidadão será
roubado, a cada cinco anos, para pagar um aumento salarial automático de 5%
para todos os juízes, desembargadores e integrantes do Ministério Público deste
país.
Não se trata de premiar mérito
nenhum, ou produtividade, ou mais qualidade no trabalho, ou o cumprimento de
metas, ou sequer um tratamento um pouco mais decente para os que têm a
infelicidade de se verem envolvidos com a justiça — é dar dinheiro por “tempo
de casa”, e só isso. O “quinquênio” vem se juntar ao colar de “penduricalhos”
que anulam a regra constitucional do teto de remuneração para os magistrados —
ninguém pode ganhar mais que um ministro do Supremo Tribunal Federal — e fazem
do poder judiciário brasileiro um dos mais caros do mundo.
São acréscimos salariais pagos
a título de “auxílio” para moradia, alimentação, transporte, educação familiar,
viagens, livros, “excesso de trabalho” — mais férias anuais de 60 dias,
aposentadoria com salário integral, aumentos eternos, pensões, assistência
médica de gente rica e por aí afora. Isso leva o ganho médio de um juiz ou
procurador aos R$ 50.000 por mês — e frequentemente muito mais.
Os sindicatos que estão na
origem disso tudo, e que pressionam o tempo todo o Congresso e as assembleias
legislativas, acham pouco. Por que não, se estão obtendo tanto sucesso?
Normalmente, para os grupos sindicais, Conselho Nacional de Justiça e Supremo
Tribunal Federal funcionam como parceiros; é pedir dinheiro e correr para o
abraço.
Nada
é tão ruim quanto a avaliação da imparcialidade dos juízes criminais
brasileiros. Nosso lugar é o de número 138; pior que isso, só a Venezuela
Pelo preço que paga, o
brasileiro deveria estar tendo uma das melhores, mais eficazes e mais
confiáveis justiças do mundo. É o exato contrário: está tendo uma das piores, e
pode colocar pior nisso. É revelador, a propósito, o último levantamento do
WJP, ou World Justice Project, uma sociedade internacional dedicada
à promoção do respeito à lei ao redor do mundo. Somando-se todos os itens que
compõem a avaliação, o Brasil é o 112º entre os países que têm a pior
justiça do planeta — está entre os 20% que fecham a raia, num total de 139
avaliados. Verifica-se, ali, que no item sobre justiça criminal — uma área
essencial para se avaliar a qualidade do sistema de justiça de um país — o
Brasil está no 117º lugar. É difícil ficar muito pior do que isso. O índice que
mede se os autores de crimes são efetivamente punidos, e se os juízes são competentes
e rápidos nas suas decisões, é mais baixo ainda: entre os mesmos 139, aí, o
Brasil fica no posto 133. Nada é tão ruim, porém, quanto a avaliação da
imparcialidade dos juízes criminais brasileiros. Nosso lugar é o de número 138;
pior que isso, em toda a face da Terra, só a Venezuela.
Tudo isso já parece mais do
que suficiente em matéria de depressão, baixo-astral e fundo de poço, mas no
Brasil de hoje sempre se pode contar com o STF para piorar o pior. Poucos, ali,
têm uma história de superação comparável à do ministro Alexandre de Moraes. O
ministro já é possivelmente o grande marechal de campo das milícias judiciárias
que operam no momento neste país — conduz pessoalmente, na condição de
magistrado do STF, um inquérito criminal contra “fake news” e “atos
antidemocráticos”, uma aberração que nenhuma lei brasileira permite.
Desde
quando, afinal, a suprema corte da nação pode funcionar como uma delegacia de
polícia?
Agora, Moraes voltou a subir a
régua e bater a sua marca mais recente: mandou de volta à prisão fechada um
pedreiro do interior da Paraíba, que cumpria sua pena em regime domiciliar,
porque o cidadão saiu de casa para trabalhar 20 minutos antes da hora
permitida. Só deveria sair às 5 horas da manhã. Saiu às 4h40min, segundo a
tornozeleira. O caso foi parar no Supremo e Moraes mandou prender de novo o
pobre-diabo, por desrespeito aos horários que deveria cumprir. “Tais faltas não
podem ser relativizadas”, decidiu ele.
É alucinante. O homem não saiu
de casa às 4h40min para tomar uma pinga, mas para trabalhar, numa hora em que
os ministros do STF e milhões de outros brasileiros estavam dormindo o sono dos
justos. Quer dizer: foi punido por levantar cedo, castigo possivelmente inédito
na história do direito universal. Mas a ideia-chave da prisão domiciliar não é
justamente o incentivo ao trabalho? Não é, segundo a suprema corte brasileira —
o que importa, de acordo com essa decisão, é obedecer à tornozeleira. O
ministro Moares quis mostrar que é imparcial; como o Rei Salomão, aplica o
“mesmo rigor” para o deputado Daniel Silveira, contra quem faz há mais de um
ano uma guerra ilegal, inédita e incompreensível, e o pedreiro da Paraíba. Na
verdade, revela apenas um comportamento fanático. Não aplica justiça; persegue
os dois. Não é equilíbrio. É uma justiça de pesadelo.
Como
acreditar em justiça quando juízes de direito roubam abertamente o erário
público
Quando se aponta a insânia
pura e simples de uma decisão como essa, o STF, a imprensa e a esquerda falam
em “ataque” às “instituições”. Como assim? E as observações do World
Justice Project — também seriam um ataque? Ataque internacional, a
soldo dos inimigos mundiais da democracia?
A verdade é que a justiça
brasileira, hoje em dia, está reduzida a decisões como a volta do pedreiro
paraibano à prisão — ou a episódios de assalto ao erário como o que ocorreu com
a licença-prêmio-biênio de Alagoas. É uma comprovação a mais de que a
democracia brasileira não existe, ou não tem um mínimo de sentido lógico para
os cidadãos.
Democracias exigem, obrigatoriamente,
que a população acredite, por um mínimo que seja, na capacidade da justiça em
fazer justiça — punir o errado e premiar o certo, para começar. Como alguém vai
achar isso se há juízes com a conduta de Alexandre de Moraes? Como acreditar em
justiça quando juízes de direito roubam abertamente o erário público, como
acaba de acontecer em Alagoas? Como acreditar numa justiça feita de
“quinquênios”, “biênios”, férias de 60 dias por ano e salário extra para ler
livros, julgar processos que estão em atraso ou pagar o ensino de filhos até 24
anos, como acontece no Rio de Janeiro? É cada vez mais difícil.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
Revista Oeste, nº 114, 27-5-2022
Fux quer saber por que bandidos morreram
Bolsonaro x Moraes: disputa pode subir para Cortes internacionais
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Decreta logo Lula presidente!
A voz dos imbecis
A negação da democracia
A constituição estuprada
Cá entre nós: a justiça NUNCA SAIU DO FUNDO DO POÇO.
ResponderExcluirCarina Bratt
Vila Velha ES