O que aconteceu nesta semana em Uvalde, no Texas, e em outras ocasiões semelhantes na história norte-americana vai além do raso debate “mais armas ou menos armas"
Qualquer tragédia que arrebata vidas humanas é devastadora. Mas uma tragédia que ceifa vidas de crianças inocentes é algo tão avassalador que deixa marcas profundas em todos nós. É difícil sequer imaginar o que os pais e os familiares das 19 crianças mortas nesta semana por um atirador em uma escola no Texas podem estar passando. Como alguém pode cometer uma atrocidade dessa magnitude? E aqui, antes de seguirmos com a nossa conversa semanal, peço, por gentileza, que fechem os olhos por alguns segundos e façam uma prece para essas famílias.
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Foto: Jae C. Hong/AP/Shutterstock |
Como sempre fazem, as almas
vazias do mundo aproveitaram a tragédia para empurrar suas agendas políticas.
Durante uma coletiva de imprensa das autoridades do Texas, com a presença de
policiais, do prefeito da cidade de Uvalde e do governador, Gregory Abbott,
todos visivelmente abalados pelo terrível evento, o candidato democrata ao
governo do Estado, Beto O’Rourke, um dos que participaram das primárias
democratas em 2020, resolveu se levantar e ir até a mesa “cobrar” uma resposta
do governo sobre o banimento de armas, pauta de seu partido. De maneira
desprezível e oportunista, O’Rourke usou a tragédia para impulsionar sua
candidatura ao governo do Estado e continuar sob os holofotes.
Enquanto as autoridades do
Texas identificavam as vítimas do massacre, avaliavam suas consequências e
tentavam, dentro do humanamente possível, cuidar dos familiares das vítimas do
massacre, o ex-presidente Barack Obama divulgou uma mensagem no Twitter invocando
a morte de George Floyd, assassinado pelo policial Derek Chauvin, em
Minneapolis, durante uma prisão, em 25 de maio de 2020. Em um malabarismo
insensível e bizarro, Obama conectou o tiroteio da escola em Uvalde ao segundo
aniversário do assassinato de Floyd: “Enquanto lamentamos os filhos de Uvalde
hoje, devemos ter tempo para reconhecer que dois anos se passaram desde o
assassinato de George Floyd sob o joelho de um policial. Sua morte permanece
com todos nós até hoje, especialmente aqueles que o amavam”, tuitou o
ex-presidente. Narcisismo e psicopatia em estado puro.
Mais armas X menos armas
Longe das abjetas tentativas de usar a inimaginável dor de pais e mães para as agendas políticas, é preciso abordar de maneira honesta e com maior profundidade alguns pontos importantes que podem estar mudando os perfis da sociedade norte-americana, principalmente dos adolescentes. O que aconteceu nesta semana em Uvalde e em outras ocasiões semelhantes na história norte-americana vai além do raso debate “mais armas ou menos armas”. A própria expressão “tiroteio em massa” (mass shooting), usada em eventos como esse, já carrega em si uma ansiedade difícil de ser controlada. Nos Estados Unidos, existem várias definições diferentes, mas comuns, de “tiroteios em massa”.
O Serviço de Pesquisa do
Congresso define tiroteios em massa como incidentes múltiplos, com arma de fogo
e homicídio envolvendo quatro ou mais vítimas em um ou mais locais próximos uns
dos outros. A definição do Federal Bureau of Investigation (FBI) é
essencialmente a mesma. Muitas vezes há uma distinção entre tiroteios em massa
privados e públicos, como uma escola, um local de culto ou um estabelecimento
comercial. Os tiroteios em massa realizados por terroristas estrangeiros não
estão incluídos, não importa quantas pessoas morram ou onde o tiroteio ocorra.
Essas formulações são certamente viáveis, mas o limite de quatro ou mais mortes
é arbitrário. Há também exclusões importantes. Por exemplo, se 20 pessoas são
baleadas, mas apenas duas morrem, o incidente não é um tiroteio em massa. Mas
nada disso importa quando essas tragédias acontecem. O fato é que, em menos de
duas semanas, Salvador Ramos, 18 anos, matou 19 crianças e dois professores em
uma escola primária no Texas, e Payton Gendron, também de 18 anos, assassinou
dez pessoas em um supermercado em Buffalo, Nova Iorque.
Ambos, Gendron e Ramos, tinham
sérios distúrbios mentais. As pessoas ao seu redor sabiam disso. Família,
amigos, escolas. Ambos os assassinos disseram a outras pessoas que planejavam
cometer um tiroteio em massa e então o fizeram. O atual sistema de alerta em
vigor não está funcionando. O que, de fato, está acontecendo com muitos jovens?
Uma pessoa que tem a intenção de cometer violência é muito difícil de ser
parada em qualquer circunstância. Um ato do Congresso norte-americano não vai
fazer isso, nem o controle de armas, nem a extinção da Segunda Emenda. Há mais
armas nos Estados Unidos do que pessoas, cerca de 400 milhões. Sempre houve.
Seja qual for sua opinião sobre esse fato, os norte-americanos nunca se
disporão de suas armas. A Constituição proíbe isso e uma nova guerra civil
provavelmente seria desencadeada se a proposta fosse adiante.
Sobre controle de armas, quer
você concorde com ele ou não, isso não impedirá o próximo Payton Gendron ou
Salvador Ramos de agirem, e toda pessoa racional sabe disso. Quem puxa o
gatilho, esfaqueia, queima, atropela são pessoas, e a única maneira de parar
muitos desses assassinatos é descobrir por que a sociedade norte-americana
(assim como a brasileira) está produzindo tantos jovens violentos. Há uma razão
pela qual eles estão agindo dessa maneira. Qual é esse motivo? E não são apenas
atiradores em massa na América, esses que aparecem diabolicamente de tempos em
tempos na televisão. Nos Estados Unidos e também no Brasil, são bandidos
armados com armas ilegais, ladrões de carro, de estabelecimentos e residências.
Por que estão agindo assim? Essa deveria ser uma das principais perguntas em
todo esse contexto. Obviamente, é um dos pontos que democratas odeiam abordar,
porque cavar soluções dentro de problemas complexos acabaria por enterrar as agendas
políticas.
Armas, big techs e big
pharmas
Poucas horas depois de 19
crianças terem sido assassinadas, o presidente dos Estados Unidos fez um
pronunciamento na televisão e o tom não foi de união ou elevação do espírito de
uma nação profundamente ferida e em agonia. Em vez disso, ele aproveitou a
oportunidade para mais uma vez discutir com quem não votou nele, e o fez, como
sempre, de maneira vergonhosa. Biden disse: “Como nação, temos de perguntar:
‘Quando, em nome de Deus, vamos enfrentar o lobby das armas?
Quando, em nome de Deus, saberemos dentro de nós o que precisa ser feito? Para
que, em nome de Deus, você precisa de armas, exceto para matar alguém?’ É
simplesmente doente e os fabricantes de armas passaram duas décadas
comercializando agressivamente armas, o que os torna maiores e com maior lucro.
Pelo amor de Deus, temos de ter a coragem de enfrentar a indústria”.
As crianças estão morrendo
porque o lobby das armas está lucrando. A desonestidade chega
a ser inacreditável. E irracional também. Logo após o terrível tiroteio,
o New York Times publicou a mesma ideia sobre o lobby das
armas. Só não contaram que a National Rifle Association (NRA) declarou falência
no ano passado, enquanto as big techs gastaram mais de US$ 70
milhões fazendo lobby no Congresso. As big pharmas gastaram
US$ 92 milhões também fazendo lobby em Washington apenas no
primeiro trimestre de 2021, enquanto a NRA gastou US$ 2,2 milhões em todo o ano
de 2020, ano de eleições presidenciais. Seja qual for o problema, não é o lobby das
armas que está matando pessoas inocentes. Este é um assunto muito sério para
bobagens como essa, empurrada pela assessoria do Partido Democrata, ou a velha
imprensa norte-americana, como preferirem.
Segundo uma pesquisa feita
pela ABC News, “cerca de 11% dos crimes violentos na cidade de Los Angeles
envolveram um sem-teto em 2018, 13% em 2019 e 15% em 2020”. Tenha em mente que
os moradores de rua representam cerca de 1% da população total de Los Angeles,
mas estão envolvidos em quase um quinto de todos os crimes violentos na cidade.
Ah, mas não há nada para ver aqui. Circulando, circulando. Todos aqui em Los
Angeles sabem que isso está acontecendo porque esses números aumentam a cada
ano. E o que está acontecendo nas ruas também acontece nas escolas.
O que mudou?
O diretor-executivo da
Associação Nacional de Oficiais de Recursos Escolares, Mo Canady, disse
recentemente em uma entrevista que as escolas estão “vendo mais agressão em
termos de brigas e roubos”. Segundo Canady, isso não costumava acontecer, mas
está acontecendo agora em grande intensidade. Por quê? Não são armas. Não é
sobre o lobby de armas. Mais famílias norte-americanas tinham
armas em casa há 50 anos do que agora. De acordo com a Rand Corporation, 45%
dos lares norte-americanos tinham uma arma em 1980. Em 2016, isso caiu para
32%. Então o problema não é que estamos mais armados do que estávamos. O
problema é que as pessoas mudaram. Os jovens mudaram e estão mais violentos.
Por quê?
Essa deveria ser a conversa
bipartidária aqui nos Estados Unidos e a que deveria unir políticos de todos os
espectros no Brasil. Mas ela vem sendo abafada por lunáticos que buscam atenção
e que esperam apenas ganhar a próxima e a próxima e a próxima eleição, sem se
preocupar, de fato, com as raízes profundas de problemas que não são simples.
Mais
de 107 mil norte-americanos morreram de overdose de drogas em 2021. Esse é o
maior número anual de mortes já registrado e um aumento de 15% em relação ao
ano anterior
Provavelmente existem muitas
causas para essas dificuldades e transtornos em adultos e adolescentes. O uso
de antidepressivos nos Estados Unidos — como no Brasil — está aumentando
dramaticamente. Entre 1991 e 2018, o consumo total de Selective
serotonin reuptake inhibitors (SSRIs), ou inibidores seletivos da recaptação
de serotonina, aumentou nos EUA em mais de 3.000%. Esses inibidores deveriam
reduzir doenças mentais, mas algo não está indo na direção correta. No Canadá,
as prescrições de antidepressivos financiadas pelo Estado para jovens dobraram
na última década. Durante os lockdowns da pandemia, as
prescrições dos inibidores aumentaram ainda mais. Um grupo de farmácias chamado
“Express Scripts” relatou que as prescrições de antidepressivos aumentaram mais
de 20% durante a pandemia de covid. De acordo com os números mais recentes,
mais de 40 milhões de norte-americanos estão tomando drogas psicoativas. Isso é
aproximadamente uma em cada dez pessoas!
Mostrei esses dados a uma
amiga médica que está no campo da psiquiatria há quase 30 anos, e ela relatou
que está assustada com o movimento dos antidepressivos na América. O objetivo
dessas drogas é tornar o indivíduo mentalmente mais saudável, reduzir o
suicídio e a violência, mas, ainda assim, as taxas de suicídio e violência
estão aumentando. Não sabemos se isso é causalidade, mas precisamos encarar
esse assunto com profissionalismo e preocupação. Novos números divulgados nesta
semana pelo Centers for Disease Control and Prevention, o hoje famoso CDC,
mostram como as overdoses de drogas aumentaram durante a pandemia. Mais de 107
mil norte-americanos morreram de overdose de drogas em 2021. Esse é o maior
número anual de mortes já registrado e um aumento de 15% em relação ao ano
anterior.
O isolamento humano através
das telas digitais
Mas, então, as pessoas estão
usando mais drogas, estão mais instáveis, estão se matando com maior frequência
e, em outros casos, matando outras pessoas. O problema é tentar encontrar a
raiz da mentalidade de quem mata crianças em uma escola primária! A pessoa deve
estar tão terrível e profundamente desconectada de outros seres humanos que
isso pode parecer normal, como uma regra que se aplicaria a todos nós. O que
poderia estar aumentando o sentimento de desconexão que temos um do outro?
Pesquisando alguns dados na internet, encontrei que, em 2020, os adultos nos
Estados Unidos passavam em média oito horas todos os dias nas mídias e nas
plataformas digitais olhando para uma tela. Os lockdowns eternos
pioraram, e muito, essa situação. É claro que não estou apontando para uma,
duas ou qualquer causa certa para insanos possuídos matarem pessoas, não
acredito que haja uma única causa, mas não é difícil ver que esse isolamento
humano através das telas digitais pode estar pesando mais do que imaginamos. Em
relação a 2019, esse aumento foi de 20%.
Charles Krauthammer,
proeminente escritor norte-americano, comentarista político, médico psiquiatra
por Harvard e colaborador-chefe do terceiro Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (falecido em 2018), disse, após um
tiroteio em massa no Washington Navy Yard, em setembro de 2013, que há muitos
doentes mentais em nossa sociedade e que precisamos parar de ignorá-los,
especialmente quando políticos travestem esse isolamento covarde e vil com
vestes de falso amor e cuidado. Krauthammer, vencedor do Prêmio Pulitzer em
1987, disse: “Ele (o atirador) precisava de ajuda. Há 30 anos, os policiais o
teriam levado para uma sala de emergência psiquiátrica. Ele provavelmente teria
recebido antipsicóticos e provavelmente teria sido hospitalizado por algumas semanas.
Era assim que se fazia nos anos 1970, quando eu exercia a psiquiatria, mas hoje
isso não acontece. Os policiais foram embora e ele foi deixado sozinho. Ele era
um homem que não deveria estar sozinho. Ele deveria ter o Estado cuidando dele
e acabou matando pessoas. Olha, você quer respeitar as liberdades civis de
todos, mas há um ponto em que, se você não assumir o controle de pessoas que
estão claramente fora da realidade, você está prejudicando essas pessoas,
expondo-as e, claro, expondo tragicamente muitos inocentes ao seu redor”.
No rescaldo de tragédias como
a desta semana no Texas, e outras como Columbine, Parkland, Sandy Hook, os
norte-americanos ouvem as características compartilhadas dos atiradores:
normalmente são jovens do sexo masculino que obtiveram uma arma normalmente de
maneira ilegal, usaram drogas ou estão fazendo uso de antidepressivos pesados,
abandonaram a escola e cometeram ou planejaram suicídio como o grand
finale para seus assassinatos, além de sérios problemas familiares com
lares sem pais.
A mente humana é complicada.
Fato. Mas paramos de falar de pessoas para dar lugar ao coletivismo macabro que
ignora o indivíduo, seus problemas e as consequências muitas vezes diabólicas
de seus atos. O que esses assassinos têm em comum? A resposta aos tiroteios em
massa nos Estados Unidos ou à criminalidade no Brasil não pode ser a sempre
fácil e rasa retórica de confisco universal de armas. A falsa bondade em
ignorar doentes mentais ou viciados em drogas, sejam as ilícitas, sejam as com
prescrição médica, pode ter um preço alto demais e sem volta. Foi assim que,
nesta semana, a pequena cidade de Uvalde, no Texas, mudou para sempre.
Título e Texto: Ana Paula
Henkel, Revista Oeste, nº 114, 27-5-2022
Em 2021, foram 107.622 vítimas, um aumento de 15% em relação ao ano anterior, quando 93.655 pessoas morreram em decorrência do abuso de substâncias químicas.
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