domingo, 29 de maio de 2022

[As danações de Carina] Ainda me restam algumas pontas que ficaram soltas

Carina Bratt 

NO TEMPO em que papai era vivo, eu ia esperar por ele na entrada do quartel do 38º BI, na Prainha, em Vila Velha. Fazia isso quando ele ficava ‘aquartelado’ três ou quatro dias, por vezes uma semana, sem aparecer em casa. Eu ligava e marcávamos (quando não na porta de acesso ao Batalhão), numa padaria de porte médio que tinha ali perto, encostada na pracinha da bucólica e aconchegante Igreja de Nossa Senhora do Rosário [foto], ao lado da rua que acessava à subida ao Convento da Penha.


Logo meu velho (na época Comandante da Unidade Militar) aparecia e nos sentávamos em uma das mesinhas colocadas na calçada. O café matinal se constituía no básico. Uma xícara dupla da bebida misturada com leite e pão com manteiga, acompanhada de pedaços de bolos de chocolate ou laranja. Outras pessoas (moradoras das redondezas), igualmente à mesma hora, se convergiam de lugares diferentes com a mesma finalidade.

Gostoso o matinal ao lado de meu pai. Ele trazia no rosto um sorriso largo e bonito, calmo e de paz interior, diferente daquele semblante circunspectamente fechado quando se posicionava dando ordens em meio de seus outros colegas de farda e patente. Um amontoado de vezes fui ver de perto as tropas formadas no pátio enorme, todos perfilados como bonecos comandados, tendo, como pano de fundo a visão magnífica da Terceira Ponte, e, mais à frente, o Morro do Moreno.

Papai não gostava muito que eu fosse até onde os novos e futuros soldados se preparavam para os exercícios do dia a dia. Nessas horas, ele tocava meus cabelos com uma ternura envolvente e soprava, no meu ouvido, que a ‘minha beleza se transformava numa espécie de curto-circuito tirando a atenção dos enfileirados’. Pelo sim, pelo não, de fato, os meninos literalmente saiam do prumo. Voavam sem asas. Iam do nada à lugar nenhum, como se chocassem, em suas cabecinhas ocas, visões tenebrosas diante da minha silhueta escultural.

Me lembravam moleques de ruas descalças, feitos marionetes capitaneadas por fios invisíveis. Eu achava tudo muito engraçado e sorria por dentro, como se me abrisse, inteira, em blandícias prodigiosas. Devorando o silêncio dos inocentes, os gritos estridentes (de um tenente de cabelos ralos, com ares de sujeito maldoso), se faziam ouvir rebombando em bom som, como se prenunciassem a chegada imprevista de trovoadas fortes com desfecho de corpulento e vigoroso temporal.

Valia tudo ver e lembrar essas coisas, esses momentos. Me fazia um bem danado estar com papai na padaria, nós dois, lado a lado, tomando o dejejum e jogando conversas fora. Eu me sentia uma espécie de alma narcotizada sendo resgatada de seus pecados mais cabeludos. Me via leve e solta, exaurida de todos os erros e desacertos. Diria, sem medo de errar, que me renovava, me reabastecia de um amor literalmente incondicional.

Acima de tudo, papai me atiçava as forças e retocava a coragem, me tornando imbatível e esperançosa para seguir em frente. Muitas e muitas vezes, levava mamãe. Ela, igualmente a mim, aos olhos de papai mudava da água para o vinho. Se fazia mais formosa, se remoçava, se reconstruía. Apesar dos anos vividos, ‘Mami’ regredia magicamente, deslumbrantemente, à resplandecência e ao dilúculo daquele momento em que a euforia e o albor dos vinte afloravam com a intensidade de uma adolescente diante do seu primeiro amor.

Num desses nossos encontros, dei a ele, de presente, uma poesia que mamãe fizera e por vergonha, não entregara. Dizia assim:

‘No meio da noite’.

Acordo no meio da noite
pensando em você
me invade um tremendo açoite
saudade imensa de lhe ver
me invade um tremendo açoite
saudade imensa de lhe ver...

Tento voltar a dormir 
mas não consigo 
melhor desistir
sua ausência é como castigo
ficar longe dos seus braços
é um perigo

Se você estivesse aqui
meu coração teria paz
quantas vezes eu morri
já não me lembro mais
quero voltar a sorrir
só você me satisfaz

Sem o seu calor
sou um ser pela metade
volte pra mim amor
és a minha Felicidade
volte para mim amor
és a minha felicidade

Eu choro, e lhe procuro
entre fronhas e lençóis
e nesse momento amor
é quando mais eu penso em nós
e nesse momento amor
é quando mais eu penso em nós

Meu papito amou. Se fez menino. Mamãe se quedou em êxtase. Doces lembranças, de um ‘ontem’ que não volta, que não retroage. Neste momento, da minha varanda enorme, me visita um sol que se prostra harmonioso. É vida que segue. Acho que nada mais teria a dizer nestas minhas ‘Danações’ de hoje. Até o próximo domingo, com as GRAÇAS e a PLENITUDE do DEUS MAIOR.

Título e Texto: Carina Bratt. De Vila Velha, no Espírito Santo. 29-5-2022

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