terça-feira, 19 de abril de 2022

[Aparecido rasga o verbo] De repente tudo se fez visível quanto uma nódoa escura em xícara de fundo branco

Aparecido Raimundo de Souza

Para os apaixonados, o gosto do amor, ainda que num simples cafezinho, é infinito.”
Cíntia Moscovich em “O escândalo das estrelas da noite.”

TODO SANTO DIA
, impreterivelmente, o Casinho ia até a casa da Mariquinha, sua vizinha, para tomar um cafezinho. Bastava ver a moça sentada ou se balançando numa rede armada na varanda acorria, empertigado e solícito, com uma rosa na mão (roubada do jardim da mãe dele) encher o saco da criatura. Até aí, tudo bem. Bastava cruzar a rua, coisa de dez passos e pronto. A garota era solteira, não namorava, residia com os pais e um irmão que se engajara no exército e ascendera ao posto de tenente. O chato da história, aliás, sabido por todos. O Casinho estava a fim da beldade. Queria conquistar o coração da gatinha de qualquer jeito. Mariquinha não dizia nem sim, nem não, todavia, alimentava a ilusão cada vez mais crescente do pobre moleque.

Aos dezesseis (um ano mais velho que a princesa das suas quimeras arrebatadoras), sem assunto e troncho demais para as artimanhas do velho Cupido, desprovido, claro, dos traquejos dos veteranos, jogava um papo furado para cima dela, e, assim, ia levando. Conseguia, é bem verdade, prender a atenção da graciosa. E ela gostava. No meio das aventuras que inventava para fazer bonito, dava uma pausa, e, então, pedia a tal xícara de café. Tiro e queda. Mariquinha saltava, pressurosa, chegava até o portão, recebia a flor e, em seguida partia em busca de satisfazer o pedido de seu confinante. Acondicionada sempre em vestidinhos e sainhas curtas, as pernas roliças e bem torneadas, a maldosa fazia questão de apimentar os nervos do núbil, mostrando, no gingado do andar, os trejeitos maravilhosos que o Criador lhe dera de presente. Casinho adorava esses momentos. Era mágico e fascinante, inefável e embriagador. Chegava a ser heteróclito e surreal.

Ao subir de volta os degraus da porta da sala, a incauta, maliciosamente estancava. Ensaiava uma abaixadinha deixando propositalmente a flor que lhe fora trazida, cair ao chão. Com isso, escancarava aos arregalos do guri à retaguarda, o que redundava na exposição abundante da calcinha minúscula. Nessa hora, o Casinho quase quebrava os dentes - ora roendo as unhas - ora tentando morder as madeiras do portãozinho lilás. De certa feita, imaginou, em delírio, um violão em movimento, com as suas cordas prestes a se rebentarem ao toque agoniado de seus dedos trêmulos numa convulsão descontrolada. Aconteceu no domingo. A Mariquinha havia acabado de sair de cena, e, antes de sumir de vez, do seu raio de visão, repetiu a façanha. Casinho, coitado, sentiu, na carne o desejo latente, e mais que isso, entendeu, numa visão amalucada, o “xis” da questão.

Concluiu, nesse “xis”, da questão, que a prosopopeia da sua doce amada bem como a epopeia que ela bailava, se constituíam na formação do começo e no fim da centopeia que ela trazia oculta dentro da alma. Para terminar bem o encontro do final de semana, eis que pintou, de supetão, fardado e acaronado entre dois colegas num Jeep do batalhão de infantaria, o irmão da inimitável garina. Ao topar com Casinho, em pé, cumprimentou-o cortesmente:
— E aí, cara, tudo bem?
Meio que nervoso e aflito, Casinho apertou a mão que lhe estendia o recém chegado:
— Vamos levando...
— Esperando a Mariquinha?
— Sim. Ela acabou de ir pra dentro. Estava aqui ainda agorinha. Papeamos... acho que foi buscar meu cafezinho...
— Legal. Você deve ser o Casinho. Mora ali naquela casa azul. Acertei?

Casinho meneou a cabeça afirmativamente:
— Em cheio...
— Prazer. Sou Marco, o irmão dela. A Mari sempre me fala de você...
— Que bom saber. Satisfação imensa em conhecer você. Muito simpático.
— Obrigado, Casinho. Pelo que andei sabendo, você gosta mesmo da minha irmã e do café que ela lhe serve. Estou certo?
— Certíssimo! Olha, Marco, juro por Deus. Não existe nada melhor. Até hoje, em toda minha vida, jamais tomei, com tanto gosto, esses saborosos que a sua mana me prepara: forte, cheiroso, inigualável, aromático e o açúcar, no ponto. Eu adoro e amo, tudo ao mesmo tempo. Aliás, queria saber qual é o segredo... perguntei à ela, várias vezes, mas a danadinha muda de assunto e não se abre...

Marco retirou a mochila das costas e sentou pedindo à Casinho que igualmente se acomodasse ao lado:
— Eu revelo se me prometer não contar à ninguém, principalmente para minha irmã que cantei a pedra, abrindo o jogo. Ela certamente me mataria...
Casinho beijou os dedos em cruz:
— Juro.
— Certeza?
— Absoluta.
— Ela ferve a água, joga o pó, o açúcar e depois côa...
—... Continue...
— Melhor não. Se isso vem à tona, eu me ferro...
— Meu brother, começou fala. Como lhe disse, tem a minha palavra. Não vou dizer nada... não trairia um amigo... por sinal, a partir de agora, além de amigo, o irmão da pessoinha que mais prezo e admiro nessa vida...

— Ta bom. Darei à você um voto de confiança.
— Eu fico feliz por isso.
— Se a história vazar, eu morro jurando de pés juntos que não disse uma palavra...
— Relaxe, Marco. Apesar de ser novo na idade, levo à sério as decisões que tomo. Se abra antes que ela retorne...
— A Mari ferve a água, joga o pó, o açúcar, e depois coa...
Casinho coçou a cabeça:
—... Isso você já falou. Termine...
— Casinho, você parece apreensivo, além de extremamente curioso...
— Sou mesmo...
— Serei breve e sem rodeios. Em seguida, a Mari coa... como disse e ai, ou a partir dai, reside o segredo. Ela usa a cueca suja de bosta que papai sempre esquece na torneira do banheiro toda vez que entra para tomar banho.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas São Paulo. 19-4-2022

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