Aparecido Raimundo de Souza
— Gilda, posso lhe fazer um convite?
— Claro, tô às ordens. É pra beber uns gorós?
— Com certeza. Antes quero que você venha fazer parte da minha festa...
— Legal. Tô dentro!. Vai ter comes e bebes?
— À vontade. Porém, você me ajuda a fazer um sessenta e nove?
Gilda Jiboia virou bicho. Soltou os cachorros. Literalmente deu o bote:
— Convide a sua mãe, vagabundo...
Juarez Mangalarga não deu ouvidos à moça e seguiu em frente.
— Que coisa horrível... não entendi bulhufas.
Na praça da igreja com a Letícia repetiu a dose. Letícia tinha uma barraca onde vendia cachorros quentes e o seu negócio ia de vento em popa:
— Oi Letícia...
— Fala Juarez. Vai um cachorro no capricho?
— Depois, minha linda.
— Ué! Você nunca recusou. Tá duro? Pendura! Depois você acerta.
— Não, obrigado. De verdade. Parei aqui só pra fazer um pedido. Estou lhe chamando pra me ajudar a fazer um sessenta e nove.
— Um o quê Juarez?
— Sessenta e nove.
A garota perdeu a linha e partiu pra cima do Juarez com uma faca em punho:
— Chama a vaca da sua irmã e as galinhas, suas primas. Elas, com certeza, aceitarão. Vaza, vaza...
Juarez Mangalarga bateu em retirada, às carreiras, ou acabaria, de fato, tomando umas facadas. Se fizera transtornado. Parecia que ninguém, de bom grado, se amarrava em sua convocação. Igual fato se deu com a Cacilda dos pasteis e caldo de cana e com a Lulu dos churros.
Quase desistia da empreitada. Avistou a policial civil Marinete. A amizade entre eles vinha de longos anos. Aliás, Juarez e Marinete cresceram juntos, estudaram na mesma escola, participaram do catecismo e da primeira comunhão. As famílias de ambos se tornaram uma só. Em face disso, não titubeou. Reformulou o convite:
— Oi, Mari. Trabalhando hoje?
— Graças à Deus, não, Ju. Estou “de boa”. Algum problema?
— Nenhum. Queria que você fosse à noite lá em casa...
— O que tem de especial?
— Na verdade, nada. Só ia te arrebanhar pra me ajudar num sessenta e nove...
— Como é que é? Repete!
— Até que enfim achei alguém. Lá em casa hoje, às sete...
— Deixa ver se entendi. Pra te ajudar a fazer um sessenta e nove? É isso?
— Sim, Mari. Se acaso aceitar será a primeira que não me endereçará um não...
— Alto lá: então antes de mim você fez idêntica convocação à outras meninas?
— Sim minha linda. Chamei a Gilda, a Cacilda, a Lulu, a Letícia e, por derradeiro, você...
Nessa hora, pintou no pedaço, uma viatura da militar. Marinete pulou na frente do veículo e acenou para que parasse. Como todo mundo se conhecia, imediatamente o que dirigia encostou. Do carro saíram quatro brutamontes. Todos se cumprimentaram amistosamente:
— Beto, Luiz, Valmir e Araponga, tudo bem? Seguinte, rapaziada: prendam aqui o nosso amigo Juarez. Acabou de me endereçar um convite que achei o cúmulo do absurdo.
— Como assim, Marinete? Está de brincadeira?
— De forma alguma. O Ju me chamou pra ir na casa dele, hoje, às sete horas. Quer que eu participe de um sessenta e nove...
Os fardados riram e procuraram ouvir a versão do Juarez:
— Que papo é esse Juarez? Bebeu além da conta?
— Não Beto. Estou limpo. Só fiz o convite à Marinete...
— Repete o teor do bate papo...
— Ir daqui a pouco na minha casa, por volta das dezenove horas e me ajudar a fazer um sessenta e nove. A propósito: se vocês quiserem participar, serão bem vindos...
Depois dessa insinuação não teve conversa. Diante da evidência e da reiteração da convocação na frente dos guardas, embora fossem todos amigos, a situação de Juarez se complicou. Conduziram o sem noção à delegacia. Dez minutos depois chegou a Marinete:
— Bonfá — disse ela ao delegado. — Autue o nosso amigo por me importunar sexualmente no meio da rua...
— Não entendi. Importunação sexual, ou assedio?
— O artigo certo da lei é com você. O que sei é que o Ju me faltou com o respeito. Me propôs uma "parada" pra fazer com ele um...
—... Desenhe, mocinha!
— Me convidou pra ir na casa dele, hoje, às sete horas, fazer um sessenta e nove. E não só à minha pessoa o engraçadinho endereçou tal apelo. Antes buzinou nos ouvidos da Gilda, depois da Cacilda, da Letícia e até da Lulu...
O delegado Bonfá se virou para o Juarez. Estava boquiaberto e ligeiramente transtornado:
— Que isso, meu filho? Pirou o cabeção? Fumou um cigarrinho do demônio? Acaso cheirou pó estragado ou bebeu além da conta?!
— Claro que não Bonfá. Você me conhece, sabe onde moro, é amigo de meus pais... seu irmão Tuca joga bola com meu mano, o Piriguita...
— Tudo bem, Juarez. Estou contigo e não abro. Todavia, entrar numa lorota estranha e esdruxula com à Marinete e desdobra-la aos fardados, a coisa foge ao controle. O que tem a me dizer?
— Nada, Bonfá. Apenas acrescentar que você está convidado. Venha em casa. Pronto. Assim ninguém fica de fora...
— Eu ouvi direito, Juarez?
— Creio que sim. Estou lhe convidando pra me ajudar a fazer um belo e inesquecível sessenta e nove...
E continuou, alegre e saltitante a tagarelar:
— Que mal há nisso? Sugiro levar dona Iná, sua esposa, minha futura sogra e, claro, a Regininha. É do seu conhecimento, estou sabendo, sua filha mais eu, temos um “enrosca pentelho.”
— Não, não sabia...
Furioso o delegado Bonfá perdeu as estribeiras, quando o Juarez ampliou o convite à ele, esposa e filha. Bofetadas sonoras lhe cantaram nas ventas com a ordenança, em contínuo, para que o Miguel, plantonista de serviço jogasse o descarado atrás das grades. Assim foi. A Marinete, nesse momento amargo, sentiu pena do Juarez. O delegado “pegou pesado”, com os tabefes. Entre a cruz e a caldeirinha, a consciência pesando, a jovem resolveu, apesar dos modos de Juarez, avisar os consanguíneos dele. Afinal, pelo convívio com a linhagem dos parentes que igualmente amava como se fossem partícipes do mesmo clã, rumou para a residência do infeliz. Certamente o mínimo, apesar de se sentir ultrajada.
Bateu palmas. Veio atender o chefe da ancestralidade:
— Boa tarde, seu Sarmento.
— Boa tarde, Mari. Vamos, entre. Chegou um pouco cedo. Não se avexe. Você é de sangue. Não faça cerimônias.
— Seu Sarmento, me perdoa. Prendi seu filho. Está na delegacia. O Bonfá vai autuá-lo por alguma coisa parecida com importunação sexual ou algo do gênero.
Seu Sarmento quase teve um piripaque. Veio em socorro, dona Florinda, a mãe e os demais irmãos, tias e primos:
— O que meu filho fez, Mari? Pelo amor de Deus! Você conhece o Ju desde quando brincavam juntos.
— Eu sei, seu Sarmento. Concordo com tudo o que me disse. Mas por algum motivo, até agora inexplicável, o Ju deve ter bebido, ou sei lá o quê. Desrespeitou a mim... importunou com o mesmo blá-blá-blá, a Gilda, a Letícia, a Cacilda e a Lulu...
— E como, ele fez isso tudo Mari?
— Me chamou, e, igualmente “labiou” às meninas, para fazer — me perdoe repetir —, para fazer um sessenta e nove com ele aqui na sua casa.
E concluiu, muito séria:
— Imagine! Um sessenta e nove... me senti uma prostituta...
Seu Sarmento passado o susto, e captando a expressão errônea do filho, ao mencionar o sessenta e nove, se abriu num sorriso largo e franco:
— E que mal há nisso, Mari. Você se esqueceu? Ele hoje, o nosso Ju, está aniversariando. Completa sessenta e nove anos. Estamos preparando uma festinha e ele saiu por ai convidando os amigos...
Marinete não se conteve. Começou a chorar copiosamente. Ficou branca como vela de igreja:
— Meu Pai Santíssimo, seu Sarmento, dona Florinda. Me perdoem... que baita merda acabei de fazer... O sessenta e nove não era sacanagém... ele se referia às velinhas a serem apagadas?
— Filha, pelo amor de Deus, o que foi que você entendeu...?
— Seu Sarmento, pega a identidade do Ju e venha comigo, por favor. Estou lhe implorando. Vamos, depressa...
A comitiva seguiu às carreiras, para a Delpol. Desfeito o mal entendido, o Juarez Mangalarga imediatamente se viu posto em liberdade.
Saiu até pedido de desculpas do sogro pelo inconveniente dos safanões e, claro, pela “tranca” indevida num dos cubículos. Fechando a noite com chave de ouro, e aumentando a alegria do ilustre aniversariante, todos os policiais que participaram da prisão se fizeram solidários. No pacote, marcando presença, a Gilda Jiboia, a Letícia, a Cacilda, a Lulu e muitas outras figuras da pequena irmandade que formava o bucólico da pacata e tranquila cidadela. Em meio à festança, o Juarez recebeu um monte de presentes, se debulhou em lágrimas na hora do “parabéns pra você”. Dançou com a Marinete, com a esposa do delegado e, por derradeiro, terminou às margens da lagoa que rodeava as cercanias do povoado, sob um céu coroado de estrelas nos braços da amada Regininha, a única filha do homem que comandava as leis do lugarejo.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sertãozinho, interior de São Paulo. 8-4-2022
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