Paulo Henrique Américo de Araújo
Lá pelos fins do século XIX, o pintor francês Charles Bertrand d’Entraygues fez fama internacional com telas figurando quase sempre o mesmo motivo: crianças. Mesmo o observador comum fica encantado ao se deparar com esses quadros repletos de singeleza, doçura e inocência. Vemos aí os pequeninos em atitudes das mais corriqueiras. Nos seus jogos, brincam com bolinhas de gude, piões, bastões, cavalinhos de madeira.
Por outro lado — e aqui vem
algo de paradoxal — o artista francês frequentemente pinta coroinhas, isto é,
ajudantes de missas, vestidos enquanto tais, fazendo seus jogos e inocentes
divertimentos. O contraste é digno de apreço: meninos com batinas vermelhas,
solidéus, peregrinetas, sobrepelizes, todo o aparato próprio a um coroinha dos
tempos antigos… e assim são representados pelo pintor: brincando, jogando,
rindo!
Num dos quadros mais expressivos, os coroinhas se encontram diante do portal de uma igreja. Tudo indica que a missa apenas se encerrou. Dois dos meninos comandam o divertimento, atraindo a atenção dos demais. Eles tentam de todas as formas fazer com que o cachorrinho apático se anime a fazer malabarismos, saltando através de um círculo. As fisionomias expressam alegria própria de crianças inocentes. Além disso, há nos meninos qualquer coisa de dignidade, de elevação, que transparece, sobretudo nos trajes.
Note-se a postura do rapazinho que aparenta ser o mais velho do grupo. Vemos seu corpo ereto, a batina rubra e a sobrepeliz branca. Pés juntos, braços estendidos, rosto sorridente. Há nele certa harmonia entre o frescor da inocência e a gravidade de alguém que já assumiu responsabilidades na vida. Quase um cardeal em miniatura, diríamos.
Diante dessa cena, convido o
leitor a fazer uma digressão. Sabemos que Nosso Senhor Jesus Cristo um dia foi
criança. Poderíamos imaginar o Menino Jesus nessa mesma atitude do
“coroinha-cardeal” da pintura? A resposta não é fácil. Alguém dirá que o Divino
Infante demonstrar-se-ia mais grave, mais sério. Talvez. Não sei responder. Mas
sei que se um artista desejasse pintar o Menino Jesus encantador e digno,
encontraria uma boa inspiração nesse coroinha.
Proponho outra digressão. O
Divino Salvador, já na fase de sua vida pública, se aproxima e vê a cena dos
coroinhas brincando. Diante desses meninos, Jesus poderia dizer aquela sua
famosa frase: “Vinde a mim os pequeninos”? Opino que sim. Nada na alegria
inocente desses coroinhas desmerece a ternura de Nosso Senhor, que deseja
atrair para Si os pequenos inocentes, os humildes.
Deixo agora os ambientes
amenos e cândidos representados pelo pintor francês no fim do século XIX e
volto — com tristeza — aos nossos dias. Em que atitude comumente nós vemos as
crianças de hoje? Instintivamente, um quadro de todo diverso se apresenta a
nós: meninos e meninas mergulhados nas telas brilhantes de seus smartphones!
Vidradas, focadas e conectadas num mundo cheio de sons, cores e imagens
frenéticas.
Procuremos aí a doçura e a inocência representadas pelo pintor Charles Bertrand d’Entraygues e não as encontraremos. A vida conectada provocou devastações inegáveis no comportamento infantil. Nossas crianças são irritadiças, nervosas, depressivas. Não tenho intenção de demonstrar essa afirmação aqui, apenas cito trecho do artigo escrito por Maria Clara Vieira, em 25 de setembro p.p., publicado na “Gazeta do Povo”:
“Não é difícil encontrar
livros, estudos e reportagens que retratam os jovens nascidos a partir da
segunda metade da década de 1990, a ‘geração Z’, sobretudo no Ocidente.
Solitários, engajados com causas progressistas e vítimas das maiores taxas de
depressão e ansiedade da História — principalmente graças aos hábitos digitais
convertidos em vícios — este público já representa cerca de 30% da população
mundial e é alvo de pesquisas substanciais, sobretudo nos Estados Unidos.”2
Alguém poderá objetar que nem todas as crianças atuais levam uma vida “conectada”, diante dos smartphones e computadores. Muitas delas agem como as crianças sempre agiram: brincam, jogam, alegram-se, longe dos aparelhos eletrônicos.
Não nego que haja crianças
afastadas das telinhas. Também não nego a possibilidade de alguém, jovem ou
adulto, usar smartphones com critério e temperança. Mas qualquer observador
mediano há de reconhecer que tal não é a tendência geral. A maioria das
pessoas, sobretudo as crianças, se já não caiu na tirania digital, ao menos,
está caminhando para lá, inelutavelmente.
Considerando esta lamentável
realidade, façamos outra divagação. Acima, propus o “coroinha-cardeal” como uma
imagem aproximada de Nosso Senhor Jesus Cristo em sua infância. Pergunto agora
se o leitor conseguiria representar o Menino Jesus na atitude das crianças
“superconectadas” do século XXI. Apenas um pintor imbuído das diatribes da arte
moderna poderia retratar tal quadro.
Mais. Figuramos acima Jesus
naturalmente chamando a Si os coroinhas que brincam diante da igreja. Ele os
chama porque são pequenos inocentes. Alguém poderia imaginar o Divino Salvador
se deparando com as crianças modernas e dizendo: “Vinde a mim, vós, meninos
vidrados em smartphones”? Podemos afirmar com segurança que a infância da era
digital produz inocência, singeleza, doçura?
Todos os pais e mães
verdadeiramente católicos têm obrigação de preservar seus filhos dos males da
vida “superconectada”. Que a Santa Mãe do Menino Jesus os ajude nesse sentido.
Nota 2:
Título, Imagens e Texto: Paulo Henrique Américo de Araújo, ABIM, 27-4-2022
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-