Vitorioso no julgamento de Daniel Silveira,
o Supremo foi nocauteado pelo indulto presidencial
Augusto Nunes
O Supremo Tribunal Federal pode muito, afligiram-se milhões de brasileiros neste 20 de abril. Uns encastelados em estranhas cabines de acrílico, outros prorrogando em casa a quarentena iniciada há mais de dois anos, dez dos 11 ministros mandaram às favas a Constituição que lhes cumpre proteger e transformaram o julgamento do deputado federal Daniel Silveira num constrangedor monumento à onipotência. Era preciso que todos soubessem o que acontece a quem enxerga defeitos de fabricação nas sumidades que mandam no país. Primeiro, o grupo que controla o STF decidiu que Paulo Faria, advogado do réu, teria de passar pelo teste de covid-19 para entrar no templo que o doutor Kakay frequenta trajando bermudas. Em seguida, o réu e o também deputado Eduardo Bolsonaro foram proibidos de acompanhar o julgamento porque, até que termine a pandemia que acabou, as portas só não estarão fechadas para bacharéis em Direito. Ao abrir a sessão, o presidente Luiz Fux (indicado por Lula) recomendou à OAB que investigue a “recalcitrância” do defensor de Daniel Silveira. Até o começo da noite, textos constitucionais foram tratados a socos e pontapés. No derradeiro ato da ópera dos superjuízes de araque, o parlamentar foi castigado com a cassação do mandato, a suspensão dos direitos políticos, uma multa de bom tamanho e uma temporada na prisão de quase nove anos.
André Mendonça (à esq.) já lançou livro com Alexandre de Moraes em homenagem a Dias Toffoli (ao centro). Foto: Felipe Sampaio/SCO/STF |
O Supremo pode muito, mas não pode tudo, descobriram no dia seguinte os ministros que, horas antes, haviam submetido a Constituição a uma selvagem sessão de tortura. O Pretório Excelso não pode, por exemplo, agir como se fosse maior e melhor que os demais Poderes. O sinal amarelo foi aceso pelo presidente da Câmara dos Deputados: Artur Lira avisou que as punições impostas a Daniel Silveira teriam de ser avalizadas pelo Legislativo. O sinal vermelho foi acionado no começo da noite de 21 de abril pela surpreendente entrada em cena do presidente Jair Bolsonaro, que resgatou Daniel Silveira do buraco negro com a concessão do indulto individual. O instrumento constitucional da graça devolveu ao prisioneiro particular de Alexandre de Moraes (indicado por Michel Temer) o direito de ir e vir, o acesso a meios de comunicação, a utilização de redes sociais, o pleno exercício do mandato e a liberdade de expressão. Livrou-o também do presídio, da multa e outras perversidades concebidas pelo carrasco de toga disfarçado de relator do caso. A pena de prisão foi superior a oito anos, por exemplo, para que o condenado começasse a cumpri-la em regime fechado.
Caso se animem a contestar o decreto presidencial, os ministros terão de renegar incontáveis discurseiras que sedimentaram a jurisprudência da Corte. “Essa questão de indulto, esse ato de clemência constitucional é um ato privativo do presidente da República”, afirma Moraes num vídeo divulgado em 2018, último ano do governo Michel Temer. “Podemos gostar ou não gostar, mas esse ato não desrespeita a separação de Poderes. Não é uma indevida ingerência do Executivo na política criminal que, genericamente, é estabelecida pelo Legislativo e concretamente aplicada pelo Judiciário. Até porque indulto — seja graça, perdão presidencial, seja individual ou coletivo — não faz parte da política criminal. É um mecanismo de exceção, contra o que o presidente da República entender como excessos da política criminal.”
Em outro vídeo, que registra
um dos inúmeros bate-bocas entre Luís Roberto Barroso (indicado por Dilma
Rousseff) e Gilmar Mendes (indicado por Fernando Henrique Cardoso),
as sobrancelhas impecáveis revidam a acusação do beiço beligerante (“Vossa
Excelência, quando chegou aqui, soltou José Dirceu!”) com um esclarecimento que
fortalece a argumentação de Bolsonaro: “José Dirceu foi solto por um indulto da
presidente da República”. Por que Bolsonaro não poderia fazer em favor de um
inocente o que Dilma fez para libertar um bandido? Tudo somado, Alexandre de
Moraes terá de engolir sem engasgos o decreto presidencial. Isso se lhe sobrar
algum juízo.
O grande momento do relator do
julgamento durou apenas um dia — mas foi um dia e tanto. Já no início da
leitura do seu voto, Moraes resolveu reescrever o artigo 53 da Constituição. O
texto em vigor desde 1988 comunica que “os deputados e senadores são
invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer opiniões, palavras e votos”.
Depende, imagina o campeão da truculência, que acrescentou a ressalva indigente
na forma e intragável no conteúdo: “A liberdade de expressão existe para
opiniões contraditórias, jocosas, sátiras, opiniões, inclusive errôneas, mas
não para opiniões criminosas, imputações criminosas, discurso de ódio, atentado
contra o Estado de Direito e democracia”. A colisão com o texto constitucional
reduz o argumento a farrapos. O “quaisquer” que precede “opiniões” significa
“todas”. Sobretudo, adverte que, nos regimes democráticos, crimes cometidos com
palavras não dão cadeia. Desde que não ofendam integrantes do Supremo, teima o
relator. Quem faz isso merece cadeia.
O
caçula do STF preferiu gaguejar um voto levemente envergonhado e terrivelmente
vergonhoso
Kassio Nunes Marques, primeiro
dos dois ministros indicados por Bolsonaro, foi o único a discordar — e por
isso mesmo só ele sobreviveu sem desonra ao dia mais infame da história do
Supremo. Para tanto, bastou-lhe a opção pela verdade. Num voto curto e sem
latinórios, apoiado em artigos constitucionais e nos fatos, Nunes Marques
provou que Daniel Silveira é inocente e absolveu o réu. Tal postura tornou
ainda mais repulsivo o desvio percorrido por André Mendonça, que também deve o
emprego a Bolsonaro. Cem a cada cem brasileiros com mais de 50 neurônios
acreditavam que o ex-ministro da Justiça do atual governo recorreria a um
pedido de vista para adiar o julgamento e, assim, permitir que Daniel Silveira
se reelegesse deputado. O caçula do STF preferiu gaguejar um voto levemente
envergonhado e terrivelmente vergonhoso. Os pecados cometidos pelo réu não
justificam castigos excessivos, murmurou. Mas são suficientes para obrigá-lo a
redimir-se no cárcere.
A conversão de Mendonça
entusiasmou os gerentes da Corte. Dias Toffoli (indicado por Lula), por
exemplo, desandou no falatório transcrito a seguir sem correções nem retoques:
“Entre as grandes virtudes de um homem ou mulher está a coragem. E aqui
registro nesse sentido a coragem do ministro André Mendonça. Todos nós sabemos
que Sua Excelência sofreu pressão, mas pressão todos nós sofremos. A cadeira e
a toga nos dá autonomia para não nos sujeitarmos a ela”. O espancamento do
idioma recomenda que o ex-assessor de José Dirceu, duas vezes reprovado no
concurso para ingresso na magistratura paulista, seja condenado a frequentar
por oito anos e nove meses um curso intensivo de português. Mas o elogio faz
sentido: certos atos de covardia exigem mais coragem que demonstrações de
bravura em combate protagonizadas por heróis de guerra.
O decano Gilmar Mendes ficou
feliz com Mendonça, mas condecorou o relator: “Gostaria de destacar o papel que
o ministro Alexandre tem desempenhado nesse contexto tão difícil a partir da
relatoria daquilo que chamamos de inquérito das fake news ou
atos antidemocráticos”, enrolou-se no improviso. “Isso nada tem a ver com
liberdade de expressão e nem está coberta pela imunidade parlamentar, que
conhece claros limites”. Ansiosa por agradar ao atual mentor, Cármen Lúcia (indicada
por Lula) caprichou no falatório indecifrável: “O relator Alexandre atuou
com coragem. A demonstração de coragem que se tem demonstrado, não deixando de
afrouxar quando tem de afrouxar, e apertar naquilo que precisa ser cumprido”.
Num exame do Enem, não escaparia do zero com louvor. Completaram o elenco os
figurantes Ricardo Lewandowski (indicado por Lula), Rosa Weber e Edson
Fachin (ambos indicados por Dilma)
No dia 20, nunca pareceram tão
confiantes os ministros que sonham com a impugnação da candidatura à reeleição
de Jair Bolsonaro. No dia 21, nunca pareceu tão sideral a distância que separa
o Brasil real do bando de advogados que viraram juízes graças ao voto de um
presidente da República. O Supremo começou a semana se achando maior que o
Planalto. Terminou-a com os hematomas de quem perdeu o duelo na Praça dos Três
Poderes. Alguns doutores em tudo certamente pensam em revanche. Fariam um favor
ao Brasil, e a si próprios, se tratassem de respeitar a Constituição.
Título e Texto: Augusto Nunes,
Revista Oeste, nº 109, 22-4-2022
Pensei tivessem mandando para o inferno os urubus 'tocagados' do STF. Bom demais para ser verdade. Sonhos, sonhos, sonhos...
ResponderExcluirCarina Bratt
Ca
de Salvador, na Bahia
VIDÉO DOS MI'SI'NISTROS GILOCEANO PENDES E ROEUABERTO CARRASCOSO:
ResponderExcluirGIL (FURIOSO):
- Vamos lavar nossas cuequinhas em casa...
Roeuaberto (MAIS FURIOSO AINDA):
- Vossa excelência fique sabendo que a minha máquina de lavar queimou... agora vou ter que pedir uma pro Fula... digo pro Daniel...
Carina Bratt
Ca
de Salvador, Bahia.
O olhar de um velho descrente
ResponderExcluirque à justiça não se apega...
Percebe que, humanamente,
a humildade está cega!
Carina Bratt
Ca
de Salvador, Bahia.
Lord Acton é o autor da famosa frase:
ResponderExcluir"O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus."
BEN BURGIS
ResponderExcluirÉ extremamente comum ouvirmos que os socialistas são sonhadores ingênuos, utópicos e irrealistas. Mas a verdade é exatamente o oposto: sabemos que a concentração de poder corrompe, e é por isso que queremos democratizar todas as esferas da sociedade.
O conceito de poder é aqui conceituado como o anel de Sauron, da obra de fantasia de J.R.R. Tolkien, O Senhor dos Anéis: Aquele que possui o anel pode, no início, ser uma pessoa decente, mas o poder do anel o degenera. O poder é uma força externa que entra na pessoa e a corrompe.
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