Já diria Vinícius de Moraes: ser carioca, mais que ter nascido no Rio, é ter aderido à cidade e só se sentir completamente em casa, em meio à sua adorável desorganização
Quintino Gomes Freire
Quando ainda a cidade do Rio
de Janeira era o Estado da Guanabara, o poetinha Vinicius de Moraes,
um dos maiores cariocas que já viveu, o representante mor da Boemia, escreveu
um texto intitulado Estado Guanabara quando a capital do
Brasil mudou para Brasília e se o antigo Distrito Federal deveria ser
incorporado ao então Estado do Rio de Janeiro, com capital em Niterói ou virar
o Estado da Guanabara.
O texto é uma verdadeira declaração do que é o Carioca, ao menos em 1960, mas não mudou muito.
Estado da Guanabara
Um repórter me telefona, eu
ainda meio tonto de sono, para saber se eu achava melhor que o Distrito Federal
fosse incorporado ao Estado do Rio, consideradas todas as razões óbvias, ou se
preferia sua transformação no novo Estado da Guanabara. Sem hesitação optei
pela segunda alternativa, não só porque me parece que o Distrito Federal
constitui uma unidade muito peculiar dentro da Federação, como porque vai ser
muito difícil a um carioca dizer que é fluminense, sem que isso importe em
qualquer desdouro para com o simpático estado limítrofe.
O negócio é mesmo chamar o Distrito Federal de Estado da Guanabara, que não é um mau nome, e dar-lhe como capital o Rio de Janeiro, continuando os seus filhos a se chamarem cariocas. Imaginem só chegarem para a pessoa e perguntarem de onde ela é, o ela ter de dizer: “Sou guanabarino, ou guanabarense”… Não é de morte? Um carioca que se preza nunca vai abdicar de sua cidadania. Ninguém é carioca em vão. Um carioca é um carioca. Ele não pode ser nem um pernambucano, nem um mineiro, nem um paulista, nem um baiano, nem um amazonense, nem um gaúcho.
Enquanto que, inversamente, qualquer uma dessas cidadanias, sem diminuição de capacidade, pode transformar-se também em carioca; pois a verdade é que ser carioca é antes de mais nada um estado de espírito. Eu tenho visto muito homem do Norte, Centro e Sul do país acordar de repente carioca, porque se deixou envolver pelo clima da cidade e quando foi ver… kaput! Aí não há mais nada a fazer. Quando o sujeito dá por si está torcendo pelo Botafogo, está batendo samba em mesa de bar, está se arriscando na lotação a um deslocamento de retina em cima de Nélson Rodrigues, Antônio Maria, Rubem Braga ou Stanislaw Ponte Preta, está trabalhando em TV, está sintonizando para Elizete.
Pois ser carioca, mais que ter
nascido no Rio, é ter aderido à cidade e só se sentir completamente em casa, em
meio à sua adorável desorganização. Ser carioca é não gostar de levantar cedo,
mesmo tendo obrigatoriamente de fazê-lo; é amar a noite acima de todas as
coisas, porque a noite induz ao bate-papo ágil e descontínuo; é trabalhar com
um ar de ócio, com um olho no ofício e outro no telefone, de onde sempre pode
surgir um programa; é ter como único programa o não tê-lo; é estar mais feliz
de caixa baixa do que alta; é dar mais importância ao amor que ao dinheiro. Ser
carioca é ser Di Cavalcanti.
Que outra criatura no mundo
acorda para a labuta diária como um carioca? Até que a mãe, a irmã, a empregada
ou o amigo o tirem do seu plúmbeo letargo, três edifícios são erguidos em São
Paulo. Depois ele senta-se na cama e coça-se por um quarto de hora, a
considerar com o maior nojo a perspectiva de mais um dia de trabalho; feito o
quê, escova furiosamente os dentes e toma a sua divina chuveirada.
Ah, essa chuveirada! Pode-se
dizer que constitui um ritual sagrado no seu cotidiano e faz do carioca um dos
seres mais limpos da criação. Praticada de comum com uma quantidade de sabão
suficiente para apagar uma mancha mongólica, tremendos pigarreios, palavrões
homéricos, trechos de samba e abundante perda de cabelo, essa chuveirada —
instituição carioquíssima restitui-lhe a sua euforia típica e inexplicável:
pois poucos cidadãos poderão ser mais marretados pela cidade a que ama acima de
tudo.
Em seguida, metido em sua beca
de estilo, que o torna reconhecível por um outro carioca em qualquer parte do
mundo (não importa quão bom ou medíocre o alfaiate, de vez que se trata de
uma misteriosa associação do homem com a roupa que o veste), penteia ele
longamente o cabelo, com gomina, brilhantina ou o tônico mais em voga (pois
tem sempre a cisma de que está ficando careca) e, integrado no metabolismo
de sua cidade, vai a vida, seja para o trabalho, seja para a flanação em que
tanto se compraz.
Pode-se lá chamar um cara
assim de guanabarino?
Quintino Gomes Freire, Diário do Rio, 25 de abril de 2022
Fotos: Rafa Pereira
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