Quais pressupostos fundamentais existem por trás das tão variadas visões ideológicas de mundo em disputa nos tempos modernos? O propósito aqui não será o de determinar qual dessas visões é mais válida.
Trata-se, antes, de revelar a lógica
inerente por trás de cada um desses conjuntos de visões e as ramificações de
seus pressupostos que levam não somente a várias conclusões sobre questões
específicas, mas também a significados completamente diferentes para palavras
fundamentais como “justiça”, “igualdade” e “poder”.
Embora este seja, por um lado, um livro sobre a história das ideias, também trata muito de nosso próprio tempo, pois esse conflito de visões é tão acirradamente disputado hoje quanto foi nos dois últimos séculos.
Em “Conflito de Visões”, Thomas Sowell se propõe a examinar as fontes de conflitos ideológicos que permearam os últimos séculos. O objetivo da obra não é fazer juízo de qual visão é melhor ou mais correta, mas analisar seus fundamentos e valores e como essas visões afetam a percepção sobre diversos assuntos e conceitos que afetam a sociedade.
Sowell propõe que existe um conflito de duas visões, uma restrita, aonde o conhecimento do homem é limitado, suas ações são imperfeitas e não existem soluções ideais, apenas perdas a ganhos. A outra visão é chamada de irrestrita, onde o ser humano possui um potencial quase infinito, então é possível em algum momento atingir soluções perfeitas para os problemas mais fundamentais.
As visões não são monolíticas e possuem gradações. É possível encontrar ideologias e teorias que possuem aspectos híbridos de cada visão. Pessoas ao longo de suas vidas transitam de uma visão para outra de maneira gradual ou rapidamente.
Conceitos e palavras como justiça e igualdade possuem significados completamente opostos quando vistos sob o prisma das visões.
Thomas Sowell e a sua visão de conflito
Francisco Razzo
Pessoalmente, considero a teoria do conflito de Thomas Sowell [foto] — economista e filósofo americano ligado ao liberalismo — muito promissora para o entendimento de sociedades que se pretendem democráticas e livres. Sowell expôs sua visão de conflito no livro Conflito de Visões (É-Realizações, 2011, 277 p). Não preciso dizer o quanto recomendo a sua obra para os leitores interessados nas origens ideológicas das atuais lutas políticas. O livro faz uma primorosa gênese histórica dos fundamentos de muitas ideias que hoje circulam na praça pública.
Se pensarmos a democracia como um valor
acerca de como se deve exercer o poder político e a participação de homens
livres no espaço público, o conflito não pode ser simplesmente rechaçado como
uma ameaça à ordem democrática, mas como a força configuradora dessas
sociedades livres. Mas que tipo de conflito devemos valorizar e qual devemos
combater?
Para entender essa simples pergunta é
preciso considerar que a vida política nas democracias liberais não pode abrir
mão de uma certa concepção de conflito. O conflito é o motor da história, mas
não qualquer conflito. Por exemplo, não me refiro a conflitos físicos e a
atitudes de violência cega. No entanto, negar o elemento de dissonância na
política não passa de ingenuidade dos idealistas. Pessoas pensam e agem de
maneira divergentes umas das outras e o espaço público não deve ser confundido
com um cômodo doméstico.
Ao contrário do que o Marx do Manifesto
Comunista ensinou e exortou, o motor da história não é o conflito de
classes, mas o conflito de visões
O conflito ao qual me refiro é o
conflito de crenças e opiniões. Sociedades democráticas são tecidas por esse
tipo de disputa. É o que torna o ambiente público mais rico e dinâmico. O
brilho da democracia é entender que a política não pode propor soluções últimas
para as angústias humanas. Trata-se de um elemento inerente à liberdade
democrática a pluralidade de visões de mundo — o pluralismo irredutível e
agonístico, como falava o filósofo Isaiah Berlin.
Ao contrário da teoria do conflito de
Karl Marx, que acredita na luta de classes como motor da história; ou da teoria
de Maquiavel, que contrapõe o desejo desmesurado dos grandes pela dominação
absoluta em conflito com o desejo do “povo” de não sofrer esse domínio, a
concepção de Thomas Sowell não procura desvendar a dinâmica da realidade. Para
ele, “a realidade é muito complexa para ser compreendida por qualquer mente”.
Por isso, “as visões são como mapas que nos guiam através de um emaranhado de
complexidade desconcertantes”.
Nessa obra em especial, ele não está
interessado em desvelar, como muitos filósofos acreditam ser possível, os
segredos de como os eventos do mundo são constituídos independentemente
das mentes humanas. Antes disso, seu compromisso filosófico será responder
“quais pressupostos fundamentais existem por trás das tão variadas visões
ideológicas de mundo em disputa nos tempos modernos”. Sowell se encarrega de
fazer uma análise crítica das diversas formas de como o mundo pode ser
compreendido, e não de dizer como o mundo é.
Minha interpretação da obra de Sowell é
a seguinte: trata-se de uma defesa da liberdade, pois não há exercício mais
instigante e libertador do que o de buscar os fundamentos que sustentam as
nossas crenças, sobretudo as crenças políticas. Questionar sem receios nossas
ideias não seria o primeiro passo para uma consciência que se pretende livre?
Não foi exatamente assim que o velho Sócrates provocava seus interlocutores na
Grécia antiga? Não foi assim, no meio da democracia, que a filosofia nasceu?
Conjugar filosofia, democracia e liberdade consiste em um dos mais importantes
desafios intelectuais, já que o filósofo não pode se isolar demais do mundo,
assim como não pode se comprometer demais com o poder.
Sem romantismos baratos, o fato é que não
há exercício filosófico se não estiver intimamente associado à liberdade
interior, o palco dos mais importantes conflitos humanos. No fundo, Thomas
Sowell é um grande defensor desse tipo de liberdade na medida em que não abre
mão de pensar que o conflito se passa, primeiro, na visão que temos da
realidade e não na pretensão de falar em nome da realidade.
No livro, Sowell começa mostrando que
um conflito de visão não pode ser a mesma coisa que um conflito de interesses.
Não estamos no âmbito dos desejos, mas no interior da construção da própria
história. O que define “interesse” é a experiência direta do que se
deseja, sentimento fornecido por um “simples impulso emocional”. Ninguém duvida
da obviedade gerada pela experiência de um simples impulso emocional. Por sua
vez, o que define “visão” é o fato de que podemos nos dar o luxo de não ter
muita clareza a respeito do que se passa com os pressupostos de nossas crenças,
e essa falta de consciência de seus fundamentos encontra uma série de razões
que derivam das características teóricas das próprias visões.
Segundo Thomas Sowell, portanto, o que
define “visões” é que elas “têm uma consistência lógica surpreendente, mesmo
que aqueles dedicados a essas visões raramente tenham estudado essa lógica. As
visões tampouco são limitadas a fanáticos e ideólogos. Todos nós temos visões.
Elas são as moldadoras silenciosas de nossos pensamentos”, argumenta. Se
“visões” possuem estrutura lógicas surpreendentes e moldam nossos pensamentos,
então elas atuam em diversos campos da vida humana.
Nesse sentido, além de moldarem
pensamentos e atitudes, visões literalmente dominam a história humana. Ao
contrário do que o Marx do Manifesto Comunista ensinou e exortou, o motor
da história não é o conflito de classes, mas o conflito de visões. Descobrir
isso é muito mais libertador para a consciência dos indivíduos do que ter de
viver prisioneiro da esperança utópica de um dia encontrar a tal da sociedade
sem classes.
Francisco Razzo, Gazeta
do Povo, 9-10-2019
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