terça-feira, 5 de abril de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Porre

Aparecido Raimundo de Souza

ALGUÉM BATE
na porta da casa de Raulzinho, com insistência descomedida. Nesse momento o telefone também começa a tocar desesperado. O rapaz fica indeciso. Estanca no meio do caminho. “E agora? De quem eu cuido primeiro?” Decide pelo telefone. Odeia o barulho da campainha. Dá nos ouvidos. Corre para o aparelho. As batidas na porta persistem: 
— Alô? Quem é? 
— Eu, o Pedro. Por que demorou em atender? 
— Pedro, meu amigo, me liga daqui a vinte minutos. Estão batendo na minha porta. 
— Ué! Por quê?
— Que pergunta mais besta! Estão batendo, ora bolas.
— Mas quem faria uma coisa dessas? 

— Vinte minutos, meu amigão. Tchau! 
— Não, fale comigo. Espere Raulzinho. Agora fiquei preocupado. 
— Preocupado com que, Pedro? 
— Com o que acabou de me falar. 
— Meu Deus, Pedro. Pedi para você me retornar a ligação em vinte minutos... 
— Eu sei, eu sei... 
— Então, cara, faça isso. 
— Quem está ai, além de você? 
— Ninguém. 
— A Julia? 
— Na feira. 
— As crianças?

— Os dois na escola. 
— A Zica, sua empregada? 
— Com Julia, de companhia. Sabe como é, né. Grávida de novo, aquele barrigão... 
— Seus vizinhos? 
— Qual deles, Pedro? 
— Qualquer um. Do lado direito, do lado esquerdo, de frente... 
— Pedro, ô Pedro, quer me escutar um minuto? 
— Fala meu amigo. Você me parece nervoso. Meio que fora de controle. Aconteceu algo sério Raulzinho? 
— Pedro, me ouça. Do lado direito, mora o “Janjão 38”. 

— Tá. E do esquerdo? 
— O Moringa da “Torneirinha de Ouro”. 
— Raulzinho, chame o mais parrudo. Prometa que vai entrar em contato com o mais parrudo. Ou aquele que melhor possa lhe prestar algum tipo de socorro urgente. 
— Prestar socorro urgente? Pedro, você por acaso bebeu? Pirou na batatinha? Escuta uma coisa: “Janjão 38” a esta hora, deve andar pelo terceiro sono. Trabalha a noite, descansa durante o dia. O Moringa saiu com a esposa e os filhos praticamente junto com a Julia e a nossa empregada. 
— Tá, tá, tá. E o seu vizinho de frente? Esquecemos dele. Acione o sujeito. 
— Vizinho de frente? Que vizinho de frente, seu maluco? Não tenho vizinho de frente. 
— Como não? Tem do lado direito, do lado esquerdo e, de frente, não? 

— Foi o que disse. Agora, por obséquio, Pedro. Deixa de ser inconveniente, me dá licença. Continuam batendo na porta... 
— Pera ai, pera ai. Raulzinho, o que é que tem em frente a sua casa? 
— A rua. 
— Pombas, seu jumento. Do outro lado da rua? 
— A calçada. 
— Imbecil! Desculpe. Meu amigo. Desculpe, de verdade. Não é isso que eu quero saber. Perguntei se mora alguém. 
— Em frente? 
— É claro que é em frente. Será o Benedito? 
— Não mora ninguém. 
— A casa está vazia? 
— Não. 
— Então tem gente? 
— Não. 
— A cada minuto que passa, menos entendo! Como você complica...

— Pedro, aqui em frente não existe nenhuma casa. É um terreno baldio. Agora, por favor, para de ser importuno e maçante. Desliga esse telefone e me deixa ir cuidar da porta. Por favor. Seja lá quer for, parece furioso e fora de controle. Sabe que estou aqui e as pancadas estão cada vez mais fortes. Nunca vi ninguém bater assim na casa de uma pessoas com tamanha insistência. 
— Que isso, meu amigo. Então ainda estão batendo nela?
— Batendo não seria bem o termo. Agora o cidadão partiu para a ignorância. E tome pancadas. Você não está escutando? Quem está lá sabe que estou aqui. Meu carro está na frente do portão. 

Procurou se acalmar. Tomou fôlego e prosseguiu: 
— Acredito até que me viu entrando. Fui cedo à padaria. Olha, Pedro, me faça um obséquio: desliga e daqui a trinta minutos, a gente retorna com o papo. Dá pra ser, ou está difícil? 
— Você falou trinta. E outra coisa: como sabe que é um cidadão? Pode ser uma mulher. Não pode? 
— Que seja cidadão, cidadã, mulher, cavalo, porco... com relação ao tempo que mencionei vinte, quinze, ou trinta minutos, que diferença isso faz? Agora desliga, meu amigo. Estou ficando ligeiramente apreensivo. 
— Ela está muito machucada? 
— Por tudo quanto é sagrado! Ela quem, Pedro? 

— A porta. Você não falou que estão batendo ai na sua porta? Batendo não, espancando? O que foi que ela fez? Fechou na cara de alguém? Prendeu o dedo de algum amiguinho de seus filhos e, agora, o pai, está no seu pé, querendo tirar satisfações? Ou arranjar um jeito de criar confusão? Talvez a empregada, por descuido... 
—... Pedro, Pedro, Pedro, você está me gozando? 
— Claro que não. 
— Tirando um sarro? 
— Que isso, mano. “Qualé” a sua? 
— Então, por Deus, pelo amor de Deus, lhe imploro, desliga esse desgraçado e maldito telefone. A porta, Pedro, a porta. Vão acabar derrubando a coitada... de tanta cacetada...

— Vão? Você disse vão? Então é mais de um? Não se preocupe. Vou ligar para a polícia. 
— O quê? Policia? 
— Não se desespere. Mantenha os nervos relaxados. Vá até a cozinha e tome um café bem quente, sem açúcar. Café ajuda a manter os nervos controlados. Nada de pânico. Conte até vinte. Não, cinquenta. Tira uma dúvida, Raulzinho... a polícia é 190 ou 130? 
— Pedro, você não vai ligar coisíssima nenhuma. 

— Calma. Espere. Estou consultando o guia telefônico. Num piscar de olhos aciono uma viatura. Fique calmo. Estou saindo daqui agora e indo ao seu encontro. Aguarde que logo estarei pintando na área. Questão de minutos, segundos, milésimos de centésimos... 
— Pedro, Pedro, Pedro... Pedroooooooooo... 
— Já sei, Raulzinho... estão batendo na sua porta. 
— Pedro, Peeeeeeeeeedro... 
— Raulzinho, você é um homem ou um rato? Estou indo, seu filho de uma rapariga da zona. Pare de dar chiliques. Ao menos seja homem com agá maiúsculo, como sua mãe. Credo! 
— Peeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeedro, filho de uma égua ou de rapariga da zona é você. Vá tomar no seu... c... no seu pescoço em francêssssssssssssssssssss!... 
Barulho de telefone sendo desligado às pressas. Raulzinho acorre à porta da sala. Está suando em bicas. Pedro conseguiu lhe tirar do sério. Faz o sinal da cruz. Vira a chave. Abre. Dá de cara com Pedro, em carne e osso, o telefone ainda no ouvido, o amigo, do lado de fora, se escangalhando de rir.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sertãozinho, interior de São Paulo. 5-4-2022

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