sexta-feira, 15 de abril de 2022

[Aparecido rasga o verbo] O "Encosto"

Aparecido Raimundo de Souza  

O TIO CANARINHO DE UMA MUDA SÓ, irmão de mamãe, é o que se pode chamar de “encosto” para ninguém botar defeito. “Encosto”, não no sentido látego e funesto da palavra, mas entremostrado pelo sentido brando, ou seja, o tio Canarinho de Uma Muda Só é aquele sujeito alegre, viçoso, bonachão, desprovido, contudo, do senso prático do picaresco. Aparece aqui em nossa casa, num abrir e piscar de olhos. Pinta do nada, assoma sem ser convidado. Vem sem avisar, e se esparrama  armando a barraca de mala e cuia, de rapadura e farinha de mandioca, sem pedir licença, sem perguntar se pode ficar.  

Mesmo sem resposta, ele não se manca. Quando o qualifico como “encosto”, não me refiro ao tio como costumam definir os espíritas: aquela entidade bondosa ou malévola que está ao lado de um ser vivo para protegê-lo ou prejudicá-lo. Nada disso! O Tio Canarinho de Uma Muda Só é sangue bom. Maneiro, conversador, loroteiro... está enquadrado, portanto, numa linha que denominaria de amena, ou linha branca, ou aquela totalmente voltada para a paz. Traduzindo, ele não é um sujeito mau, nem pratica qualquer tipo de ação condenável pela sociedade, a não ser a de sacanear e torrar a paciência dos familiares que o amam por força do parentesco imposto pelo mesmo sangue que corre nas veias.  

Simplesmente o tio Canarinho de Uma Muda Só inventa de ir passear e vai. Ou melhor, vem. E quando o faz, não se conscientiza de que se faz necessário ficar apenas alguns dias, o essencial, ou o imprescindível para matar as saudades, rever seus pares e depois, bem, depois, dar no pé. Ele não se liga, não entende que as pessoas têm problemas, obrigações e afazeres. É aí que entra o outro “encosto”, embutido nele, ou seja, aquele perverso e pernicioso, sarcástico e perdurável, que faz a criatura se transformar num chato de galochas. Sempre que há um chato no pedaço, alguém se transforma em pato. Ou pata.  

Nessa hora, a mamãe se alterna no pato, melhor dizendo, na pata. E a casa dela, em hospedaria. Todos, no acolhimento desse aconchego, se transformam em patos. Mas o que é um pato? Pato é aquele sujeito com cara de pato (não confundir com o Marreco) que os espertos pegam para bode espiatório. O coitado do Mané que vai “pagar o pato”, é o caridoso que purgará seus pecados, literalmente. Fazer, portanto o outro de pato (ou pata) é o mesmo que transformá-lo num labrusco ou besta quadrada. O Tio Canarinho de uma Muda Só faz da irmã, nesse caso que aqui trago à baila, uma espécie de desmiolada, um joguete a seu bel prazer.  

Sem falar que o tio “encosta” com força, e, ao se alombar, esquece de voltar para casa. Olvida, como se fosse acometido de uma amnésia repentina de nome pouco comum, o “distúrbio funcional chatal”. De repente, dá a impressão de que um troço, igualmente como uma mala sem alça, toma conta de seus pensamentos mais lúgubres. Com isso, o titio alicerça as suas detenças fatigantes comboiando nas costas da primeira vítima que encontra (no caso, a mamãe) e ai fica dando despesas sem lembrar de coçar os bolsos.  

Geralmente o “encosto” detesta espiar o recheio da carteira. Parece que o “faz me rir” vira prurido e, como um formigamento viral, “despermite” que seus dedos arranquem de um polpudo calhamaço algumas notinhas de cem reais. Por assim, fogem estabanados, como gambás indefesos de um predador aterrorizante. A pior coisa no “encosto” é a paciência. Ele tem demais. Até sobra. Tanta é a calmaria, que chega a ser patriarcal e apertinente, o que afeta a cachola do afim visitado, deixando a irmã (no caso minha mãe) meio abobalhada, por mais bem intencionada que esteja o seu coração. O “encosto” geralmente é piolho duas vezes.  

Dito de forma mais objetiva, numa sequência única, ele é cacete, importuno, vazio de idéias, e, como tal, age sem escrúpulos. Agride a sua indignação, sem falar que esbofeteia a do vínculo biológico, colocando a criatura com os nervos à flor do salve se quem puder. O “encosto” geralmente mora em outro estado que é uma válvula de escape para demorar mais quando mostra às fuças. Uma vez recebido no lugar, com toda pompa e honradez, Cruz Credo, que Deus tenha piedade do anfitrião! O “encosto” nunca pensa em desistir de um empreendimento. Quanto a isso, é tenaz, manhoso, ardiloso e ferrenho.  

Chega a ser terminal, como se fosse uma doença incurável. Aconteça o que acontecer, a sua força de vontade prevalecerá sobre os demais. E ai de quem o contrariar! Ao viajar, leva tudo o que não precisa na bagagem. Anda sempre com pouca grana na carteira, e a desculpa esfarrapada do cartão excedido no limite. Toma refrigerante em excesso, costuma almoçar e jantar como um nababo, sem falar que, ao se deitar, ronca e peida, papeia como se discutisse com alguém. Um detalhe. Tio Canarinho de Uma Muda Só é crente. Crente, claro, à moda dele. Acredito que leve a Fé no bico, e se mostre real, quando está ameiado ao pastor e às irmãs que fazem parte da congregação.  

De manhã, ao sair, impreterivelmente aloja a Bíblia Sagrada debaixo do sovaco e só dá sinal de vida na hora do almoço. A comida dele é especial. Não come isso, nem aquilo. Carne de porco, ou de porca, jamais. Sequer gosta de sentir o cheiro. Em contrapartida, exige bife bem passado, ovos, salada, arroz e feijão cozinhados na hora. O tio Canarinho de Uma Muda Só guarda os sábados religiosamente, mesmo que os sábados caiam numa segunda, ou quinta-feira. O desgranhado não vê novela, nem assiste a telejornais. Se alguém ligar um aparelho por perto, a primeira coisa que indaga é se existe algum “programinha” que “passe ou exiba filmes de sacanagens”, de preferência, um canal que não mencione o nome de Jesus.  

O “encosto” gosta de ver mulheres peladas, chega a ficar vidrado. Sai do ar, esquece o mundo ao seu redor, principalmente quando as beldades do belo sexo mostram as melhores partes de seus atributos. O “encosto” não aprendeu a fazer meia volta, daí seguir sempre em frente, aconteça o que acontecer. Não gosta que lhe chamem a atenção, nem que especule quantos dias pretende ficar arrimado. Essas coisas o irritam e faz com que multiplique a dilação, que é para testar os nervos e saber se o pato —, perdão —, se o parente aguentará o tranco ate a sexta-feira seguinte do mês que ainda nem sonhou em entrar em curso.  

Assim é meu querido tio Canarinho de Uma Muda Só: Intolerável, rabugento, maquiavélico, persistente e safado. Sabe jogar com as ocasiões, aproveitando aquelas que mais lhe sejam favoráveis. Em linha paralela, meio da rua, nas praças e dentro dos ônibus, prega a palavra de Deus com eloquência mordaz. Anda sempre de martelo e pregos nos bolsos. Na primeira oportunidade que surge, o tio se põe de pé, ajeita a barriga, esconde a direita no bolsos, com a esquerda dá uma coçadinha no saco, fica sério como um irmão da confraria e garra a falar da religião.  

Para ele, todas as outras denominações estão erradas. Só a sua salvará a galera da igreja que frequenta, permitindo que seus membros sejam os únicos moradores das mansões celestiais. Os demais —, profetiza muito compenetrado —, “os demais não caminharão pelas ruas de ouro, não verão a Face do Criador, tampouco a de Jesus Salvador. Essas almas penadas, seguirão para as profundezas do inferno, como nômades, como cadáveres ambulantes, esqueletos insepultos, em busca de um amanhã que não virá”. E o pior: fora do portal da obra do seu pastor, “os que não estiverem irmanados, à ele, encontrarão, de contrapeso, o Satanás chupando manga.”  

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sertãozinho, interior de São Paulo. 15-4-2022 

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