Incansáveis, os “especialistas” do costume avançam com múltiplas causas para a pandemia de “morte súbita”, uma ou duas causas por “especialista”
Alberto Gonçalves
Cá e lá fora, tem-se falado muito
do excesso de mortalidade. Bem, para dizer a verdade, não se tem falado tanto
quanto isso. E o relativo silêncio é curioso. Durante dois anos, fechou-se
metade da humanidade para evitar, sem particular sucesso, mortes
desnecessárias. Agora que as mortes desnecessárias continuam a acontecer, as
“autoridades” e os “media”, tão caridosos e aflitos em 2020 e 2021, não lhes
ligam nenhuma.
Uma possível explicação
prende-se com o facto de não se conseguir imputar à Covid todo o “superavit”
vigente de falecidos. Longe vão os saudosos tempos em que cada finado,
incluindo os que se finaram sob os eixos de um autocarro, partia “de”, “com” ou
“por” Covid. Reduzir a realidade ao bicho que veio da China conferia a esta o
estatuto de maior cataclismo desde o Dilúvio, facilitava o enchimento de
“telejornais” e emprestava aos políticos a possibilidade de fingirem resolver
uns problemas enquanto criavam problemas maiores. O povo, entretido com o medo
e a Netflix, agradecia tudo.
Por azar, a presente vaga de
óbitos a mais – que atinge a maioria do Ocidente e cuja vanguarda Portugal
naturalmente integra – não se esgota na Covid. A presença da Covid, decerto
medida com o rigor habitual, justifica apenas uma parte dos óbitos. Uma segunda
parte, desconfio, são os infelizes que não foram consultados, diagnosticados,
medicados ou operados a pretexto de a Covid não ceder espaço a leviandades como
cancros e maçadas cardiovasculares. Se ninguém lhes ligou na altura devida, é
compreensível que se mantenham desprezados na altura da morte.
Sucede que uma terceira, e
pelos vistos significativa, parcela do atual excesso de defuntos não morre nem
de Covid nem de enfermidades “tradicionais”. Morre de quê, então? Ui, isso é
complicado. Para início de conversa, é preferível descrever como esses coitados
morrem: de repente. E de repente também, a “morte súbita” parece ter saído das
anomalias estatísticas para se tornar um critério relevante na contabilidade
das funerárias. Quais são os sintomas desta doença inesperada (em vários
sentidos)? O grande Mark Steyn enumera ambos: num momento, estamos bem; no
momento seguinte, estamos mortos.
É claro que a ciência estará a tentar descobrir os motivos do fenómeno. Desgraçadamente, os pantomineiros que saltitam pelas televisões e pelos jornais chegaram antes. Incansáveis, os “especialistas” do costume avançam com múltiplas causas para a pandemia de “morte súbita”, uma ou duas causas por “especialista”.
A consulta ao Google, o
nacional e o estrangeiro, é inspiradora. Há os “especialistas” que vão pelo seguro
e se ficam por trivialidades. É possível, dizem, que essas mortes se devam ao
calor, tese que funciona sobretudo quando está quente, mas que depressa se
adapta ao frio e, com jeito, ao clima ameno. A lacuna da tese é o calor, o frio
e as temperaturas intermédias serem coisas velhas, e a quantidade de “mortes
súbitas” coisa nova. É aí que os “especialistas” jogam o trunfo: o aquecimento
global. Ou as alterações climáticas. Ou a emergência climática. Ou o suicídio
coletivo climático, para usar o neologismo fresquinho do eng. Guterres.
Recapitulando, as pessoas morrem repentinamente de calor, de frio e, quiçá, da
angústia de sentirem o planeta em risco. Estamos entendidos?
Não estamos. Inúmeros
“especialistas” empenham-se em fugir ao óbvio e pesquisam em lugares
improváveis a razão para que milhares de sujeitos bem-dispostos desatem, num
ápice, a esticar o pernil. As hipóteses que se seguem são retiradas da imprensa
britânica, a qual, ancorada no conhecimento dos sábios, atribui as “mortes
súbitas” a:
1) Aumento da fatura da luz;
2) “Stress” pandémico;
3) Fanatismo futebolístico;
4) Cigarros electrónicos;
5) Bebidas alcoólicas, mesmo
que ocasionais;
6) Falhar o pequeno-almoço;
7) Obsessão com previsões
meteorológicas;
8) Dietas não saudáveis;
9) Dietas saudáveis;
10) Microrganismos sortidos;
11) Sedentarismo;
12) Prática de desporto;
13) Medo da guerra na Ucrânia.
Por mim, acrescento ainda a
herança colonial, o racismo sistémico, a supremacia branca, o
heteropatriarcado, o capitalismo selvagem, o capitalismo domesticado, os
transportes privados, a discriminação de transgénero e as ameixas maduras. E as
ameixas verdes, evidentemente.
Face a tamanha profusão de
explicações, é compreensível que alguns países ou regiões prefiram evitar a
especificidade na hora de apontar culpas. A província de Alberta, no Canadá,
começou a imputar as “mortes súbitas” a “causas desconhecidas”. Hoje, é
oficial: as “causas desconhecidas” são, destacadas, a principal causa de morte
em Alberta e, provavelmente, noutros sítios que tivessem a decência de assumir
a ignorância. Curioso. No fim do primeiro quartel do século XXI, com os
portentosos avanços da medicina de que dispomos, morremos sobretudo sem saber por
quê. Se somarmos a isto a perseguição à propriedade privada e a entrada dos insetos
nas ementas, não tarda que a evolução da espécie nos devolva ao orangotango.
Porém, não vou divagar. Nem
especular sobre as novidades e as mudanças que, no mundo dos últimos 15 ou 18
meses, seriam susceptíveis de influenciar a mortalidade. Não me apetece
polémicas. À cautela, admito que o provável é os mortos em excesso morrerem por
defeito, o defeito da vaidade. Vai-se a ver e aquilo é gente que quer ser
diferente e anda mortinha por dar nas vistas. Gente assim faz o que calha para
aparecer. Incluindo desaparecer.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
30-7-2022
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