terça-feira, 19 de julho de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Safadinha e ordinária

Aparecido Raimundo de Souza

O PACHECO ESTÁ NOIVO de aliança e prestes a se casar com a coisinha mais adorável e delicada do bairro. A Puritana da Conceição. Uma moça bonita, de apenas dezessete anos, olhos verdes, alta, esbelta, os cabelos negros, repartidos, sem falar que possui um corpo escultural, de princesa (daquelas saídas dos fantásticos contos de fadas). Quem a vê, de pronto imagina que notadamente na realidade do amor quando se ver posto à prova, ao vivo e a cores, nestes instantes mágicos, entre os agasalhos de quatro paredes, dá a impressão de pegar fogo incendiando tudo ao seu redor.

Pacheco vai para a casa dela todas as noites, porém, como é um homem evangélico e seguidor dos dogmas da religião, ao pé da letra, atrelado ao fato de, acima de tudo ser respeitoso e consciente, não mantém relações mais íntimas com a jovem. É pecado e a congregação condena. Por conta, o mancebo fica apenas nos abraços e beijos, deixando os "finalmentes", para quando estiver devidamente em dia, ou seja, legalmente matrimoniado perante as sagradas leis da sua igreja e as bênçãos de Deus.

Nesta noite, os pombinhos, acabaram de fazer um rápido lanche. Ambos se acham acomodados na varanda do quarto dela, debruçados no parapeito, olhando à rua movimentada. De repente, cruza, em direção à pracinha da Matriz de Santa Perpétua, a Suzana Pinga Fogo. Pacheco, ao ver a ex-cachopa, chama a atenção de Puritana:
— Amor, veja quem está passando aqui em frente...
Puritana, finge uma distração longe de ser verdadeira. Dirige uma espiadela breve e reconhece, de imediato, a ex-namorada de seu futuro marido:

— Não é a lambisgoia da Suzana com quem você teve um caso?
— Ela mesma, amor...
— Lambisgoia, amor? Que nomenclatura esquisita. Coitada da criatura!... e não tivemos um caso... nunca toquei nela...
— Acredito! Então, por qual motivo se doeu? Está com saudades?
— Olhando para ela, me lembrei que frequentei a casa de seus pais, por quase um ano e meio...
— E dai? Por que este assunto justo agora?
— Me veio à memória o pensamento de que eu tinha, de fato, vontade me casar com ela, formar uma família, ter filhos...

Puritana, desliza os dedos pelos cabelos que lhe caem, em ondas espetaculosas, até à altura da cintura. Insiste procurando um pezinho para uma futura briguinha:
— O que eu quero saber, na verdade é o seguinte: por que lhe deu na telha remoer tais fatos? Acaso está arrependido? Quer pedir arrego e voltar para ela? A porta da rua é a serventia da casa. Melhor dito: basta pular o parapeito da minha varanda. Se não está satisfeito... certamente a lambisgoia mal parida o receberá de braços abertos entre outras "aberturas...".
Pacheco, carinhoso e apaixonado, cego, os quatro pneus furados abraça a garota:
— Não, é nada disto, minha fofa. Eu te amo. De forma alguma... quero pedir arrego ou reatar com a Suzana...

— Então...?
— No começo do nosso relacionamento eu achava ela bastante esperta e inteligente, meio tímida é verdade, mas dava para o gasto. Fiquei em dúvida quando me revelou que contou para a mãe dela —, imagine você, que doideira... chegou ao ponto de abrir para dona Pombinha, que sempre que a gente ia para o quarto dela, eu ficava sentado em sua cama até altas horas da noite, e que depois eu ia embora e que rolava somente uns beijinhos... nada além de tais mimosidades...

Pacheco toma fôlego e prossegue, muito sério:
— Em razão deste fato passei a ver nela uma pessoa meio burrinha e sem juízo... onde já se viu falar certas particularidades nossa, do nosso namoro, logo para a mãe?
Puritana da Conceição aproveita a brecha e ataca:
— Cá entre nós, morre aqui o papo. Vocês ficavam só sentados, ou...?
—... Ora, amor, às vezes eu dava umas deitadinhas. Me espichava... mas veja bem, sem colocar a carroça diante dos burros. Melhor que ninguém, você sabe como sou e como ajo.

Faz nova pausa e conclui, seguro de si e de seus atos:
— Você tem consciência que jamais abusaria, ou melhor, fosse qual fosse as circunstâncias, euzinho me atreveria a ultrapassar o sinal, tirando algum tipo de proveito. Hoje somos noivos e logo lhe farei a minha esposa. Sua pessoa é a prova viva da minha integridade e de tudo o que estou afirmando...
Puritana se abre num sorriso atroz, bárbaro e travesso. Em seguida completa, com certo desdem na voz. O idiota contudo, não percebe:
— Realmente, a sua fulaninha ali foi mesmo uma idiota. Bem diferente de mim, amor... não chega nem aos meus pés... nem a meus pés...

— Por que diz isto, minha princesa?
— Porque eu não sou assim tão vulgar e nunca serei. Tampouco faria o que ela fez. A sua ex deu diploma para ela mesma de bobinha, de tola e de mulher sem experiência... o meu vizinho aqui do lado, o Gilberto da Cobra Fumando, seu amigo, inclusive, tem passado noites inteiras aqui no meu quarto, deitado aqui na minha cama, nós dois estudando para as provas do ENEM, e eu nunca... nunca disse nada à mamãe.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 19-7-2022

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Um comentário:

  1. As colunas de Aparecido Raimundo de Souza são publicadas às terças e sextas-feiras

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