terça-feira, 12 de julho de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Intrusos

Aparecido Raimundo de Souza 

SETE DA MANHÃ.
Tempo fechado. Chove torrencialmente. Relâmpagos por toda parte riscam o céu, castigam a cidade. Um inferno. No ônibus super lotado um engraçadinho, acobertado pelo anonimato, solta uma série de fedidos tão catingosos, que chega a doer na alma. A galera, espremida, pior que sardinha em lata, põe a boca no trombone. Não só a boca, a língua, o nariz e os dentes também. O primeiro, viajante confortavelmente sentado na cadeira dos idosos, faz cara feia e berra:
— Um...!!! ... um...!!! ... um...!!!... quem é o infeliz que está dando ré no quibe?

O segundo passageiro, ao lado dele, descreve os mefíticos à nariz aberto:
— Ovo podre, na certa!
Uma jovem vestida num elegante e minúsculo vestidinho rodado que lhe deixam os dotes físicos à deriva de olhares impudicos, desabafa:
— Não deve ter mãe o calhorda. Certamente acha que seus puns anais não empesteiam o ambiente, deixando todos nós subjugados e à sanha de um rabo sujo que sequer teve a coragem de descer para nos livrar a todos desta fedentina dos quintos do inferno.

Na confusão de corpos, braços, pernas, sovacos e axilas, além de desodorantes vencidos, um negrão de quase dois metros de altura tenta, debalde, abrir uma janela no tapa. Em vão:
— A coisa por aqui tá mal!...
Uma garotinha de uns seis anos, colada à barriga da mãe encara o sujeito e não deixa por menos. Rebate:
— E como tá, seu moço!... meu pai vive dizendo que estes safados que agem na surdina são os “comodistas”.
O negrão, apesar da situação, cai na gargalhada:
— Como assim, minha princesa?
— Peidam “sem se mexer...”. Quase igual os “insensíveis”.
— Explica, minha linda...
— Os “insensíveis” cagam nas calças e “pensam que foi só um deslize do fiofó”.

Enquanto isso, o cobrador (tampando o nariz com os dedos), furioso e colérico resolve botar pilha na turma ensandecida e se fazer solidário ao ajuntamento comprimido e esmagado, sem condições alguma para onde correr:
— Quem teve coragem de soltar aqui dentro estas carniças brabas, poderia encomendar a alma ao capeta...
— Faça-me o favor – esbraveja um senhor se abanando com um jornal todo amassado. — Pelo visto o “sem noção” está indo para os quintos dar o caneco pro tinhoso...
Em decorrência da chuva torrencial seguir caindo sem piedade, todas as janelas se acham hermeticamente fechadas.

Nenhuma brecha aparece, nenhuma fresta, sequer um desvão se apresenta para a entrada de um vento reparador e benfazejo. Linha paralela, a miserável da inhaca apodrecida segue impregnando e, a cada minuto que passa, parece criar formas gigantescas crescendo desordenadamente na sua cruel insensatez:
— Um glorioso filho de coração aberto se prontificaria a ter a gentileza de meter a mão numa destas janelas e escancarar?!
Os confortáveis galantes que viajam acomodados (e não estão nem ai para os demais) se mantém silenciosos. Ninguém de peito e coragem responde. Preferem dividir o oculto e cheiroso viajante comunitariamente a se prestarem tomar alguns pingos de chuva em suas cabeças:

— Gente, por favor, tem uma senhora aqui atrás de mim sendo acometida por um incômodo. Vamos ajudar nossos companheiros. Solidariedade não faz mal à ninguém.
Bem lá atrás, uma turma de desesperados deblatera com o motorista:
— Toca, toca, toca... mete o pé...
O cheiro acre, indiferente à plebe, persiste cada vez mais saliente e reinante, sem dar um minuto de folga:
— A senhora aqui vai desmaiar. Abram alas, abram alas...
O vozerio estardalhaçado não cessa:
— Toca, toca, toca!...

Nesse interregno, a rapaziada tenta se virar de um lado para outro, como pode, numa espremeção balburdiosa, em face do espaço apertado no interior do coletivo que, aquela altura, dá a impressão de rodar pela avenida movimentada com criaturas querendo sair pelo ladrão:
— Abram alas, saiam da frente. “Motor”, para no hospital... temos uma senhora carecendo de socorro...
A plebe inversa, em coro uníssono se zanga enfurecida. Discorda:
— Esquece o hospital, motor... toca, toca, toca!... tira o pé do freio, seu filho de uma égua...

A tromba dágua segue caindo à cântaros. Não se enxerga nada. Não dá trégua. Não pede desculpas. O negrão de dois metros, completamente transtornado, finalmente quebra uma janela. Estilhaços de vidros voam para todos os lados. Aos alaridos, a multidão insiste, eufórica. Os “colados nos bancos” não querem que a condução interrompa a marcha:
— Toca, toca, toca...
Porém, os mais humanizados (venho a tal senhora passando mal), se rebelam:
— Para ai, motor, Encosta essa droga!

O dilúvio de vozes entrelaçadas se exaspera. De todos os cantos se levantam uivos tresloucados numa espécie de terror estonteante:
— Toca, toca, toca, vou chegar atrasado... deslancha, desgraçado!
— Vou perder a hora...
— Cadê o ar condicionado?
— Ar condicionado nesta hora? Quer alastrar mais o arroto que nos tira o sossego?
A baderna se generaliza. Vira um pandemônio. O pobre condutor do volante, estressado, pê da vida, temeroso de levar uns tabefes, interrompe a viagem. Conhecedor das ruas e travessas, desvia o buzu e o estanca na porta da delegacia. Policiais são acionados. O coletivo é abordado:

Militares embarcam, os fardamentos molhados:
— Um...! ...um...! ...um...! Por acaso alguém “cagou aqui drento?!” —... indaga um dos representantes da ordem, com o queixo sujo de migalhas de pão.
Atrás dele vem o delegado, o rosto tapado com uma máscara bordada com as iniciais da Polícia Civil. Sem olhar para alguém em particular, solta a indagação, muito sério:
— Que houve aqui?
— Um cão sarnento liberou a linha telefônica sem tirar o fone do gancho, “seu doutô”. Tem uma senhora ali precisando de cuidados especiais.

A idosa é retirada e colocada numa ambulância. Calmaria restabelecida, volta o delegado:
— Quem fez isto, de outra vez, por favor, não repita: gente, pelo amor de Deus. Ao invés deste mau cheiro, melhor deixar o cu da bunda em casa.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 12-7-2022

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