sexta-feira, 22 de julho de 2022

[Aparecido rasga o verbo] O sábio

 Aparecido Raimundo de Souza 

TODO MUNDO ADMIRAVA o Epaminondas. Era um homem de estatura mediana, olhar sincero e penetrante, deveras misterioso, e, ao mesmo tempo, alguém que nos recebia sempre de braços abertos. Andava ligeiro, de um lado para outro, e trazia um sorriso elegante nos lábios, acompanhado sempre de uma jarra de suco gelado de maçã, e, dependendo das horas, de um cafezinho feito na hora que ele fazia questão de nos servir sem ajuda de ninguém. Epaminondas chegou por aqui, na nossa cidade, há uns quinze  anos. 

No início, uma pessoa fechada, quieta, mas quando começava a falar, com uma voz macia e relaxante, todos o escutavam. Parecia que rodara o mundo inteiro, visto de tudo, e conhecido um pouco de cada lugar. Carregava, em si, uma enorme mala de sabedoria. Às vezes, a gente sentava no alpendre de sua casinha modesta, de madeira, e ficávamos tomando refrigerante, comendo pão com mortadela e jogando conversa fora. Para cada coisa que falávamos, o Epaminondas tinha uma resposta na ponta da língua, um conselho, uma história interessante para contar. 

Muitos de nós conversávamos com ele, e alguns diziam que se sentiam incomodados, porque parecia que o olhar dele atravessava nossa alma e olhava muito além do horizonte. A minha amiga Genoveva dizia que gostava de papear com ele, porém, quando ele a olhava, parecia que a enxergava além de suas roupas. Às vezes se sentia nua na sua frente. Chegou até a imaginar que, talvez ele fosse um tarado enrustido que fugira de algum lugar. 

César, meu vizinho ia sempre procurá-lo, dizendo que passava por uma espécie de crise existencial, ou algo parecido, e o Epaminondas contava histórias da Índia, dos árabes, dos vikings, fazia relatos engraçados e, com isto, sentia ganhar nova vida e se revigorava disposto a enfrentar tudo o que viesse. As raras vezes em que saía, colocava um chapéu velho e ensebado na cabeça, levava consigo seu cachorro, um pastor alemão, que apesar da aparência de brabo, se fazia amigo de todos. 

Ficávamos admirados com o seu conhecimento, com as suas viagens. Será que havia algum lugar na face da terra onde não tivesse a criatura passado? Será que havia algum livro que não houvesse lido? E ele falava de José Lins do Rego, de Raquel de Queirós, de José Saramago, de Jorge Amado... seu olhar, seu olhar pairava em algum lugar, além de nossa compreensão. Como se algum anjo estivesse a fazer sinais para ele. Quinze anos se passaram, e seu nome às vezes aparecia no jornal, “como o homem de maior visão que surgiu na cidade”. 

Chegaram até a compará-lo a Buda, Júlio Verne, e Confúcio... Tinha gente que se deslocava de outros municípios para visitá-lo, e ele sempre tinha escondida, na manga, uma nova peripécia para contar, um sorriso, uma nova energia a oferecer a quem viesse ter com ele. Contava noventa e quatro anos. Estava narrando uma história, acho que um conto das Mil e Uma Noites. Notamos que passou, de repente, a ficar cansado enquanto falava. Estávamos eu, o César, a Genoveva, a Tânia, o Teodorico, o professor Eduardo, e mais uns três ou quatro que não recordo os nomes. 

O seu cachorro Mercuryo, deitado a seu lado, como sempre. Em seu colo, Sidharta, um gato angorá, branquinho como neve. Uma hora, assim do nada, ele deu uma pausa e olhou para nós. Sentimos como se estivesse espiando para dentro de nós, como se prescrutasse a  alma. Deu um sorriso alegre, distante, então fechou seus olhos por uns segundos, aparentemente exausto. Aguardamos ansiosamente. Com a mesma tranquilidade que falava conosco, nunca mais acordou. 

Ele dizia que adorava ficar sentado em umas pedras, próximo a uma macieira, na beira do rio que cortava a cidade. Nesse local ele foi enterrado. Mercuryo idem, igualmente sepultado ao seu lado. Morrera menos de duas horas depois dele. Foi uma coisa bonita de se ver. Eu nunca contei tanta gente em uma cerimônia fúnebre. Acho que tinha mais gente na capela, que moradores na cidade. O povo, em peso, bem ainda das localidades vizinhas, prestaram as suas últimas homenagens a ele. 

Até a Dircinha, uma irmã que morava em Brasília estava lá. Depois das exéquias, voltamos e nos reunirmos na casa onde ele morava. Mostramos à Dircinha, ou melhor dito, esmiudamos a ela, contando da pessoa maravilhosa que o Epaminondas fora. Como nos recebia, e como entrelaçava as histórias de todos os lugares que viajou, e o melhor: como via a todos nós, com a sua humildade, com a sua calma bucólica que parecia eterna. A irmã Dircinha, emocionada, nos ouvia em silêncio. 

Ao final, achou que estávamos gozando dela. Imagine só que loucura! Procuramos desfazer o desagradável entendido às avessas e saber a razão de sua incredulidade sobre o que contávamos. Em resumo, ela disse simplesmente que não podia ser aquele Epaminondas que enterramos na beira do rio, apesar de que os pertences que havia na residência faziam parte da vida dele. Entretanto, apesar disso tudo, o irmão dela nascera cego, nunca usara óculos escuro para disfarçar a sua falta de visão. 

Para completar, como vinha de uma estirpe de pais pobres, jamais  sobrou um centavo furado que desse condição do pobre homem sair para algum lugar, ainda que próximo da casa dos pais. A pergunta que nos deixou a todos   encucados: Meu Deus, como ele não enxergava nada? Como sabia de tantas coisas? Epaminondas, meus amigos amados, só ouvia rádio e televisão, e. pelo que ficamos sabendo, fez isso dia e noite, durante toda... durante toda a sua vida… 

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 22-7-2022 

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