sexta-feira, 30 de setembro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Um sujeito mal-agradecido

Aparecido Raimundo de Souza

SANSENFONA DO AMARAL
seguia alegremente pelo lado direito da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, quando, à altura da Sá Ferreira ouviu uma voz doce e meiga lhe mandando uma ordem meio que incomum:
— Fique onde está.
No mesmo instante Sansenfona obedeceu. Pensou se tratasse de um assaltante ou trombadinha querendo alivia-lo de seus pertences. Olhou para um lado, depois para outro e nada. Sem mais nem menos, um enorme pedaço de gesso de uma marquise se desprendeu e quase o acertou em cheio. Se não tivesse parado, certamente estaria internado num ambulatório de pronto atendimento com uma enorme fratura exposta na cabeça.

Passado o susto momentâneo, seguiu em frente. Quando se decidira a mudar de rumo, objetivando atravessar para a mão esquerda, quase às portas do antigo Cinema Roxy, a mesma voz voltou a lhe dar novo alarme:
— Por favor, Sansenfona. Fique onde está.

Se não tivesse obedecido e detido os passos, teria sido atropelado por um taxi que não conseguindo frear com a fechada do sinal vermelho, mirou o passeio, dando de cara com uma carrocinha de picolés, atirando a ao longe, junto com seu condutor. Voltou a olhar para todos os lados e não viu ninguém. A seu lado, pessoas estranhas iam e vinham, outras paravam assustadas para tomarem conhecimento do ocorrido. Da voz que o detivera, nem sombra. Quando desembocou na Siqueira Campos, às escadas do Centro Comercial para dobrar a via e se dirigir em sentido da Ladeira dos Tabajaras, mais uma vez a misteriosa voz se fez presente intercedendo à criatura a suspender a caminhada:
— Calma, espere.

Um morador de rua, possivelmente drogado apareceu exaltado e, completamente fora do normal. Ao fazer a transposição desferiu uma paulada na cabeça de um senhor que seguia ao seu lado. Pelo fato de não ter ido em frente, o desconhecido tomou a cacetada em seu lugar. A pancada, apesar de forte, não causou danos ao infeliz, contudo, populares careceram de socorrê-lo às carreiras. Sansenfona, intrigado, boquiaberto, não acreditando no que acontecia diante de seus tremores, antes de voltar a se movimentar, perscrutou em volta, na tentativa de descobrir quem lhe salvara de sofrer sérias escoriação e, no pior dos mundos, talvez até perder a vida:
— Quem é que está me mandando parar? Parece um carrapato grudado na bunda de um cachorro!

A mesma voz serena e calma das vezes anteriores deu uma risada gostosa e voltou a se manifestar:
— Sou eu, Sansenfona. Seu protetor.
— Protetor? E cadê você?
— Estou emparelhado bem aqui ao seu lado. Grudado nos seus calcanhares. Você não pode me ver. Apenas me ouvir...
— O que quer comigo?
— Como lhe disse, sou seu protetor. Em outras palavras: seu Anjo da Guarda. Prazer.

— E daí? Continue...
— Minha missão é cuidar do seu dia a dia, zelar pela sua vida e pelo seu bem-estar. Não deixar que coisas ruins venham lhe acontecer. Obviamente, pelo tamanho da sua incredulidade, deve ter um caminhão de perguntas a me fazer! Estou certo?
— Na mosca.
— Sou todo ouvidos. Comece...

— Na verdade, para início de conversa, eu teria, de fato, um rol imenso de indagações. Entretanto, de pronto, meu caro Anjo da Guarda, ou Protetor, não importa. Seja lá qual o outro nome que use, não me diz respeito. Em verdade, apenas uma pulguinha está me incomodando.
— Terei imenso prazer em matar a sua curiosidade. Manda brasa.
— Seguinte, seu incompetente: me diga em que lugar andava com o nariz enfiado no dia dez de maio deste ano, quando a minha mulher e a minha filha morreram atropeladas naquele fatídico desastre na Avenida Brasil, à altura da entrada de Bonsucesso, ou mais precisamente encostado às barbas do Hospital Federal onde somente eu escapei saindo ileso e sem um arranhão sequer?!

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. 30-9-2022

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