domingo, 25 de setembro de 2022

[As danações de Carina] Imprevistamente...

Carina Bratt

Para minha amiga Ana Clara, falecida em sua casa, na Ilha do Governador, em   20-9-2022

A ANA CLARA queria conhecer o mundo. Sonhava Paris. Como quem põe na cabeça ir à lua numa excursão promovida pela faculdade de jornalismo, sonhava voar até à França. Se via subindo na magistral Torre Eiffel, no Champ de Mars e, lá do alto, espiando longamente extasiada a cidade cortada por suas avenidas largas... imaginava encontrar o seu príncipe encantado. Quem sabe, quando voltasse às artérias da realidade da Cidade Luz, mergulhasse completamente pelada nas águas do rio Sena. Mergulhar pelada? No Sena? Impossível! Não vinha ao caso. Mudaria os planos.

Extremamente católica, antes de se recolher, elaboraria uma oração ao Altíssimo na Catedral de Notre-Dame, passaria pelo Arco do Triunfo, emendaria com o Museu do Louvre, daria um ‘oi’ discreto para a Mona Lisa e depois, muito depois, descontraidamente faria umas seções de fotos ao longo da Champs Élysées. Antes de pisar no hotel para sair do ar, descansar, na maior cara de pau, tomaria umas boas xícaras de café com leite e comeria pães com manteiga no sofisticado ‘Café Antonia’, dentro do luxuoso Hotel Le Bistrol. Obviamente seria tri legal!  Ana Clara não ficava só em Paris. Acordava também em Veneza.

Se via endeusada na praça de Sam Marco ou mais precisamente ajoelhada em prece dentro da basílica de São Marcos, a nave de fora a fora coberta por um amontoado de mosaicos bizantinos e um campanário de tirar o fôlego com seus telhados vermelhos voltados para o fascínio da cidade misteriosa. Em seguida, passearia de gôndola pelo Grande Canal, suspiraria ao ver a Ponte dos Suspiros e a de Rialto, sem mencionar os fabulosos palácios góticos e renascentistas ao som de uma serenata exclusiva composta somente para os enlevos de seus ouvidos.

Se maravilharia, tempo depois, como uma menina boba ao dar de frente, os olhos desmesuradamente abertos para a imensidão solitária do Mar Adriático. A Ana Clara não se aquietaria depois que saísse de Veneza. Estaria, no próximo final de semana, na Ilha de Manhattan, em Nova York. Subiria no World Trade Center e, lá do topo, ou exatos quinhentos e quarenta e um metros, abraçaria a cidade que nunca dorme. Contemplaria o Central Park, o Edifício Dakota, última residência oficial de John Lennon e Yoko Ono.

Renovaria as velhas saudades do Empire State Building, do Rio Hudson, da Estátua da Liberdade, do Harlem, do Brooklyn, do Queens e do Bronx... tiraria umas fotos do complexo Rockfeller Center, do Times Square, e tentaria entender como os nova-iorquinos conseguiam passar as suas calças e camisas de uso cotidiano usando o Flatiron Building, na verdade um prédio de esquina com a Fifth Avenue, a Broadway e a 23rd Street construído em formato de ferro de roupas.  Às vezes a jovem ia mais longe em seus enfeitiços e refazia os caminhos de Hemingway.

Sem igualmente atinar com o fio da sua obstinação por fisgar, sozinho com seu barco solitário, um peixe enorme que não conseguiu chegar ao destino. Ana Clara, afora essas insanidades passageiras, adorava as suas trintas e poucas Barbies. Todas sem as cabeças ou faltando um braço ou perna. Quando saia para brincar com as outras coleguinhas da sua idade, logo se entediava dos folguedos e voltava correndo. Se trancava no quarto. Depois, quando despertou para o amor, seu único irmão, o Maciel, cinco anos mais velho, passou a pegar direto em seu pé.

Ele conhecia todos os moleques da escola, onde ambos estudavam e achava que nenhum dos guris era bom o bastante para namorar sério. Por essa razão, sempre os consanguíneos discutiam e saiam nos tapas, quando toda a família se reunia sentada no sofá da sala assistindo a uma serie chata e maçante na Netflix que parecia nunca chegar ao fim. Os sonhos de Ana Clara se desfizeram na noite de terça-feira, vinte p. p, quase aos derradeiros do final de setembro. Do nada, depois de ter jantado, se trancou em seu quarto. Não retornou à sala para a continuidade da série indigesta e enfadonha da Netflix. Dia seguinte se fez ausente no café da manhã.

Os pais acorreram ver o que aconteceu. Bateram, gritaram, se esgoelaram. Nenhum som. Nada. Chamaram os vizinhos, os bombeiros, por fim, derrubaram a porta. Ana Clara se fazia estirada na cama, de bruços, quieta, silenciosa, o rosto aberto numa espécie de sorriso abonançado. Na mão direita, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Na sequência, choros, lamúrias, desesperos, ambulância, corre-corre, hospital, UTI, médicos. De nada valeu a batalha hercúlea para vê-la reanimada.

Ana Clara voltou sem vida, desfalecida, sem cor, desbotada, esmaecida, esfriada, MORTA. No velório, dentro do caixão, a fisionomia contente, divertida, o semblante alegre, feliz, jubiloso, os olhos silenciosos e cerrados numa paz perene, acolhedora e abençoada. Ao me despedir dela, a avistei serena. Em casa, depois dos funerais, pensei com meus vazios cruéis e bárbaros. Ana Clara deve estar bailando em outra dimensão. Quem sabe nesse momento passeando por Paris, Roma, Veneza, Dubai, Canadá... Berlim. Não importa. O Universo, finalmente, se fez inteiro prostrado a seus pés.

Título e Texto: Carina Bratt. Da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.  25-9-2022

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