terça-feira, 13 de setembro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Fósforo queimado

Aparecido Raimundo de Souza

A NOVA MORADORA
que se mudou para o meu prédio, fez hoje um mês e quinze dias que estreou a casa nova. Veio ocupar o apartamento fronteiriço ao meu. Nos separa um fosso de dois metros, talvez menos, o que me permite fazer um tour ousado pela sua sala de estar. Desde então, venho tentando me encontrar com a preciosa. Ainda não dei sorte. Sem desistir da empreitada persisto ferrenhamente na luta. Morrer tentando se preciso for desistir, jamais. Finalmente, agora pela manhã, Papai do céu me ajudou e o sol brilhou grandiosamente com a bonita saindo do casulo e me levando às nuvens. Pela primeira vez, nos defrontamos cara a cara no corredor. Além de nós, mais quatro acolhidos dividem o primeiro pavimento de uma torre de quinze. O engraçado, na história. Nos oito anos em que aqui resido, uma ou duas vezes dirigi palavras aos demais aquartelados. Diferente com a teteia recém agasalhada. Trocamos, pois, um “oi”, à guisa de bom dia e, logo em seguida, passamos para assuntos triviais. Como moramos no primeiro, descemos juntos os três lances das escadas. Fora do condomínio, caminhamos um bom pedaço na avenida, enquanto falávamos do anódino até o ponto em que eu segui meu destino e ela partiu em busca da programação que trouxera numa pastinha de plástico vermelha. Antes de nos despedirmos, perguntei o que fazia:
— Secretária numa empresa de exportação — disse com uma graça marota bailando nos lábios sensuais. E antes do aperto de mãos, trocamos os nomes:
— É um prazer te conhecer. Eu sou o Berredo.
Mantendo a vozinha elegante, e o aperto de mão, declinou o seu, de batismo:
— Érica.

Arrisquei, à guisa de prolongar a conversa:
— Érica com “K”, ou com “C”?
Em resposta emendou, faceira:
— Érica com “C”.
— Achei legal —, rebati. Tenho uma filha com seu nome...

Olhando assim, diria, sem medo de errar, que as duas, a minha Érica e ela, se pareciam um bocado. Mesma altura, olhos argutos, o rostinho de princesa, o corpo escultural. O que diferenciava uma da outra, talvez a gargalha enigmática. A recém-chegada tinha o seu riso um pouco forçado. A minha lembrava as tardes na hora em que se recolhia para dar lugar à noite se aproximando. Sempre nessas passagens, pressentia o perfume de fragrâncias raras trescalando de seus cabelos compridos e fazendo com que sobressaíssem lindamente na amarelenta cor do mel na sua forma mais gostosa e adocicada. Na minha vizinha, apesar de toda a sua realeza infantil, pressentia algo meio que restringido, como se na sua vida faltasse um mimo para completar a plenitude da felicidade. Afora esse particular ela se transformara na fina rosa que adornava o jardim do seu próprio espaço dentro da solidão que a atormentava. Antes de dizermos um “até logo mais à noite”, Érica que cursava faculdade de oceanografia revelou que precisava de uma máquina de furar paredes.

Prometi que providenciaria para aquele mesmo dia, final da noite. E o nosso abrir de novos papos vindouros se concretizou no momento em que a convidei para tomarmos café e estanquei apressado, na porta da padaria superlotada. Ela, todavia, obtemperou dizendo que perdera a carona e necessitava correr para o ponto de ônibus ou chegaria atrasada ao serviço. O café ficaria para outra ocasião. Sem que percebesse, segui a sua silhueta de longe e o fiz sorrateiro por detrás de um par de óculos de lentes escuras. Ela não caminhava. Voava sobre os passos. Ao longe, cantou uma cigarra anunciando a primavera. Todos que estavam ao meu redor, na entrada do estabelecimento, pensaram que a cigarra cantava para eles. Na verdade, a cigarra cantava para ela. E ao tempo em que cantava, Érica virou a esquina e sumiu no burburinho que ficou bailando no ar. Nesse interregno, a rua inteira se vestiu de um azul indescritível. Adentrei à padaria. As flores, em cima das mesinhas onde as pessoas se fartavam com a refeição matinal, brincavam de perfumar o ambiente. O sol apareceu pressuroso e teve início uma geografia cheia de surpresas. Algo, no ambiente, sintetizou uma paixão. Talvez fosse a fragrância que a minha vizinha solitária deixou impregnado no ar da manhã quente e radiante. Ao cair da tarde, antes do horário marcado, me peguei em casa. Da minha janela da sala, olhei para a dela.

Tudo calmo e às escuras, com o prédio inteiro adormecido no vazio que nessas horas da noite prestes a chegar, parece crescer de intensidade. Do meu posto, além de vasculhar o interior da nova inquilina, igualmente me era dado, divisar o mar. Diria, sem medo de errar, que um pescador solitário, diante da imensidão do oceano, tentava desviar um barco imaginário em meio as ondas procelosas. Como eu, impaciente, procurava apaziguar meu coração, aos saltos, quase em frangalhos, pela ausência da nova albergada. As horas do meu relógio de pulso não estavam nem aí. Os ponteiros corriam, os minutos extrapolavam. Pouco, ou quase nada, deveria restar para a aproximação das vinte e duas. E nem sinal dela. Sem querer, fui pego por uma cochilada. No descuido do interregno de tempo, o sonho despontou. E no sonho, a Érica chegou de mansinho. Pressenti seus passos suaves bailando no frio do corredor. A imagem do seu rosto penetrava nos meus sentidos e acelerava a minha inquietude. Acordei, sobressaltado. Meia noite, agora, e nem sinal da insinuante butterfly. O espaço continuava na penumbra pesada. Foi um êxtase rápido. Uau! Esqueci que olvidei completamente da máquina de furar. Muitas coisas a serem feitas. Compromissos se desdobrando, num vai e vem incessante. Amanhã, à primeira hora, pedirei à Carina, minha secretária, que ponha a furadeira no porta-malas do carro. Não posso falhar com a mocinha que está ao meu lado, apenas alguns passos.

Duas portas imponentes de madeira rústica se interpunham entre nós. Érica, a minha confinante, talvez não chegasse a tempo de ver o meu desassossego. E a furadeira? Não importava! Na espera da preciosa mariposa, segui empoleirado em meu banco, os pensamentos todos voltados para o seu sorriso manietado. Tudo ajudava a consumir não só a mim, mas o tempo inteiro e longo que eu reinventei para voltar a estar ao lado dela. Subitamente, passos quebraram o silencio da noite alta. Uma da manhã. Não mais dormindo, ouvi o porteiro falando alguma coisa que não distingui. Sem dúvida, ela aportando. Agora não mais uma “dormidinha”. A Érica, a minha contígua, em carne e osso, regressava. Que diabo estaria fazendo até aquela hora fora do seu domicílio de descanso? Não é exatamente um momento propício para escancarar a porta e entregar a máquina de furar que ela tanto precisava e eu não trouxera. Pensei mil coisas. Deveria estar vindo de alguma amiga onde fora estudar. Não sei exatamente quais as matérias dos currículos de uma futura oceanógrafa, mas sejam quais forem, pelas horas, não me pareceu apropriado para uma dondoquinha na idade dela voltar para o conforto da sua vivenda. A escada se acendeu. Em seguida, o corredor. Saio às carreiras da janela. Apaguei a luz e acorri espiar pelo buraco do olho mágico. A minha pombinha não vem sozinha. Agarrada a sua cintura, um rapaz mais alto que seu porte, acredito, a mesma idade.

Surgem, ambos, abraçados. Param. Se beijam. Afoito, o garanhão enfia a mão direita por baixo da saia jeans e a suspende. Capturo, num relance, a calcinha branca e o desgraçado, sem melindres, naturalmente buscando encontrar o objeto de prazer oculto sob o minúsculo nylon. Érica emite uns gritinhos de prazer antecedendo o despertar das pudicícias proibidas. Desesperado, caio na real. A verdade aflorou ligeira. E como se levasse um coice repentino nos chifres dos olhos, entro em pânico. Nessa fase contundente da batalha, ela é encostada à parede. Será que os outros quatro bisbilhoteiros, como eu, também participavam do espetáculo? Érica me faz lembrar uma desmiolada galopando um cavalo à trote ligeiro, o seu corpo frágil balançando freneticamente ao sabor do ritmo do animal que a fustigava. A gestos apressados, eles se encaixaram e chegaram ao clímax. Ainda com o bedelho esquerdo metido na cissura do olho mágico, me descompassei e me desestruturei. Levado pelos arquejos das lascívias, desci as calças e me desfiz num rápido banquete à guisa de um cinco contra um endoidecido. Ao término, ao invés de feliz, chorei. As lágrimas rolaram rosto abaixo. Caíram em profusão. Me senti um Mané impotente por não poder abrir a porta e dizer a ela, que o meu coração se enamorou perdidamente pela sua beleza e formosura. Por assim, escudado e ao asilo do visor do olho mágico e no silêncio pesado que me rodeava, eles deixaram o ringue do corredor e adentraram para o apê. Eu, sozinho comigo, segui aos trambolhões para o quarto. Me desabafei solitário e insatisfeito, rolando na cama enorme, sobre meu próprio estupor de deselegante embriaguez.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 13-9-2022

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