terça-feira, 6 de setembro de 2022

[Aparecido rasga o verbo] Sobrevivência

Aparecido Raimundo de Souza

O GATO PRETO estava com uma fome tremenda. Um apetite sofreguido (1), de três dias ou mais. De repente, viu seu almoço suculento em forma de passarinho de alma solta. Era uma dessas caseiras, por descuido de seu dono, ou sabe-se por qual cargas d’água, a indefesa avezinha passeava, sem maiores cuidados, alforriada (2) alguns centímetros distanciada da gaiola. Em verdade, a coitadinha não enxergava um palmo adiante do bico. Esfomeado, o Gato Preto armou o bote para pegá-la. Calculou milimetricamente o pulo. Não podia errar, ou... se algo desse errado... adeus gororoba. Sem mais delongas, partiu ligeiro para o abraço.

Chuapppp...

Entretanto, ao tentar abocanhá-la, o impossível se fez presente. Um outro Bichano, mais vistoso e senhor de si, os pelos brancos, as patas compridas, os olhos com maior alcance de visão periférica, igualmente espreitava idêntica iguaria. E o Gato Preto, por puro azar, não o vira. Estava famulento demais para pensar em qualquer outra alternativa, senão a de empanturrar a barriga. Foi seu erro. Mais despachado, o Malandro miador de corpo branco como a neve, chegou de mansinho. Veio do nada, se achegou em sentido contrário e, de repente, numa pirueta certeira, se adiantou.
Chuapppp...

Em face desse júbilo inesperado, não deu outra. Na mosca. O Desconhecido arrebatou, vitorioso e invencível, alegre e esfomeado o saboroso almoço  quentinho do dia.

O Gato Preto, coitado, triste e macambúzio (3), ao se deparar com tal imprevisto, arregalou os espantos e ficou a ver a gaiola vazia. Não só isso. Presenciou a sua boia suculenta tomando outro rumo na abocanhada sorridente de um Estrangeiro companheiro de desdita. A maldita fome, naquele instante tão imprópria, como por desencanto, aumentou assustadoramente. Triplicou. Passou dos limites. Além de crescer, passou igualmente a doer com mais insistência e obstinação.  

Do outro lado, distanciado do oponente consanguíneo do qual tivera a sorte de lhe roubar a refeição, contando vitórias, ou melhor, se vangloriando dela, explodindo de contentamento e emoção e, claro, feliz e realizado por ter deixado o infeliz a ver navios, o Gatuno de pelos brancos, vindo de outras paragens, seguro de si e se sentindo, por conta, o rei da caça ao tesouro caído do céu, sem pressa e sorridente, se banqueteava da desditosa avezinha em saborosas dentadas protegido pela cumeeira de um velho telhado de um casarão abandonado.

MORAL SEM MORAL DE UMA HISTÓRIA REAL: 

O Gato Preto se quedou, entristecido, rabinho entre as pernas, a fome reclamando algo sólido. O desespero ficou cabisbaixo e, de roldão, se desconfortou vencido e aniquilado.  Restou, por derradeiro, se constranger a afagar o desequilíbrio da turbulenta “roncação” (4) da barriga vazia, em face do naco deleitável do regalado cobiçável que lhe escapara, incontinente, das garras humildes, ter ido para o espaço. Uma coisa o Felídeo aprendeu: A fome, em certas ocasiões, seja lá ou aqui, ali ou acolá, não importa: a maldita fere, machuca, desequilibra e, sobretudo, desestrutura.  

Resumindo: também no mundo animal, em primeiro plano deve avultar a inteligência do mais safo e ladino (5). Prevalece, impera e sobressai, a lei da selva, qual seja, predomina, acima de qualquer suspeita, o “salve-se quem puder”. É o velho “olho por olho, dente por dente”. Por assim, a situação progride e engrossa a astúcia do mais sabido.  Melhor dito, o sacudido e audaz brada, pelo que quer conseguir, se esgoela, bufa, a plenos pulmões, “sacode a roseira” com mais intensidade e termina sempre levando a melhor. O frágil e desmilinguido, o franzino, como no mundo dos humanos, leva a rasteira, toma o tombo, ainda que se ache o mais esperto e senhor de si. 

Notas de rodapé:
1 - Sofreguido – aflito, impaciente, ansioso, angustiado.
2 - Alforriado – aquele que foi ou se viu liberto de alguma coisa maligna.
3 - Macambúzio – triste, oprimido, insatisfeito.
4 - Roncação – o que ronca ou ressona em alto e bom som.
5 - Safo e ladino – esperto, cuidadoso, inteligente, pessoa que tem visão de tudo ao seu redor.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. 6-9-2022


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