Aparecido Raimundo de Souza
Chuapppp...
Entretanto, ao tentar abocanhá-la, o impossível se fez presente. Um outro
Bichano, mais vistoso e senhor de si, os pelos brancos, as patas compridas, os
olhos com maior alcance de visão periférica, igualmente espreitava idêntica
iguaria. E o Gato Preto, por puro azar, não o vira. Estava famulento demais
para pensar em qualquer outra alternativa, senão a de empanturrar a barriga.
Foi seu erro. Mais despachado, o Malandro miador de corpo branco como a neve,
chegou de mansinho. Veio do nada, se achegou em sentido contrário e, de
repente, numa pirueta certeira, se adiantou.
Chuapppp...
Em face desse júbilo inesperado, não deu outra. Na mosca. O Desconhecido
arrebatou, vitorioso e invencível, alegre e esfomeado o saboroso almoço
quentinho do dia.
O Gato Preto, coitado, triste e macambúzio (3), ao se deparar com tal
imprevisto, arregalou os espantos e ficou a ver a gaiola vazia. Não só isso.
Presenciou a sua boia suculenta tomando outro rumo na abocanhada sorridente de
um Estrangeiro companheiro de desdita. A maldita fome, naquele instante tão
imprópria, como por desencanto, aumentou assustadoramente. Triplicou.
Passou dos limites. Além de crescer, passou igualmente a doer com mais
insistência e obstinação.
Do outro lado, distanciado do oponente consanguíneo do qual tivera a sorte de lhe roubar a refeição, contando vitórias, ou melhor, se vangloriando dela, explodindo de contentamento e emoção e, claro, feliz e realizado por ter deixado o infeliz a ver navios, o Gatuno de pelos brancos, vindo de outras paragens, seguro de si e se sentindo, por conta, o rei da caça ao tesouro caído do céu, sem pressa e sorridente, se banqueteava da desditosa avezinha em saborosas dentadas protegido pela cumeeira de um velho telhado de um casarão abandonado.
MORAL SEM MORAL DE UMA HISTÓRIA REAL:
O Gato Preto se quedou, entristecido, rabinho entre as pernas, a fome reclamando algo sólido. O desespero ficou cabisbaixo e, de roldão, se desconfortou vencido e aniquilado. Restou, por derradeiro, se constranger a afagar o desequilíbrio da turbulenta “roncação” (4) da barriga vazia, em face do naco deleitável do regalado cobiçável que lhe escapara, incontinente, das garras humildes, ter ido para o espaço. Uma coisa o Felídeo aprendeu: A fome, em certas ocasiões, seja lá ou aqui, ali ou acolá, não importa: a maldita fere, machuca, desequilibra e, sobretudo, desestrutura.
Resumindo: também no mundo animal, em primeiro plano deve avultar a inteligência do mais safo e ladino (5). Prevalece, impera e sobressai, a lei da selva, qual seja, predomina, acima de qualquer suspeita, o “salve-se quem puder”. É o velho “olho por olho, dente por dente”. Por assim, a situação progride e engrossa a astúcia do mais sabido. Melhor dito, o sacudido e audaz brada, pelo que quer conseguir, se esgoela, bufa, a plenos pulmões, “sacode a roseira” com mais intensidade e termina sempre levando a melhor. O frágil e desmilinguido, o franzino, como no mundo dos humanos, leva a rasteira, toma o tombo, ainda que se ache o mais esperto e senhor de si.
Notas de rodapé:1 - Sofreguido – aflito, impaciente, ansioso, angustiado.
2 - Alforriado – aquele que foi ou se viu liberto de alguma coisa maligna.
3 - Macambúzio – triste, oprimido, insatisfeito.
4 - Roncação – o que ronca ou ressona em alto e bom som.
5 - Safo e ladino – esperto, cuidadoso, inteligente, pessoa que tem visão de tudo ao seu redor.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. 6-9-2022
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