domingo, 18 de setembro de 2022

Rosa também acha que só a ditadura salva a democracia

O STF prolonga o túnel concebido para perpetuar a escuridão

Augusto Nunes

No fim da tarde de 23 de setembro de 1985, José Sarney resolveu passear por Nova York a bordo de uma limusine branca. Tal requinte, muito apreciado por casais de Michigan em lua de mel na cidade grande, foi um fecho perfeito para o dia mais glorioso da longa vida desfrutada pelo dono da capitania do Maranhão que, no ano anterior, tinha virado presidente da República. De manhã, ele chegara para discursar na abertura da assembleia geral da Organização das Nações Unidas escoltado por uma comitiva de bom tamanho. Quando empunhou o microfone, os compatriotas já ocupavam a fila do gargarejo do plenário repleto de assentos vazios.

No meio do falatório soporífero, resolveu apresentar ao mundo o poeta maranhense Bandeira Tribuzzi. Nem mesmo o bando de brasileiros ouvira qualquer menção ao bardo que conviveu com Sarney durante a juventude em São Luís. A procissão de platitudes recomeçou depois dos versos. Ansioso, o deputado mineiro Milton Reis enxergou na primeira vírgula a senha para soltar o grito de guerra que animava os comícios de antigamente: “Apoiado!”. As cenas de primitivismo explícito confirmaram a frase em que Millôr Fernandes condensou o sentimento nacional decorrente da descoberta dolorosa: o país que dormiu com Tancredo Neves pronto para subir a rampa do Planalto acordou com o vice no gabinete presidencial: “Sarney foi o túnel no fim da luz”.

Neste 12 de setembro, a cerimônia de posse da nova presidente do Supremo Tribunal Federal avisou que Rosa Weber é uma espécie de Sarney em forma de mulher, de toga, com sotaque gaúcho e a expressão atarantada de quem ainda não sabe direito o que faz por lá. Terminada a discurseira, enfeitada por bravatas de vereador de grotão em campanha eleitoral, ficou claro que a ministra nomeada por Dilma Rousseff é o prolongamento de um túnel que começou a ser construído em 2013, com o fim do julgamento do escândalo do Mensalão, e parece condenado a não rever a luz.

“Que não se cogite descumprir ordem judicial”, caprichou na bravata a sucessora de Luiz Fux. A salva de palmas revelou que os devotos do ativismo judicial (ou da judicialização da política) encontraram no aplauso unânime o sinônimo sonoro do “apoiado!” berrado na ONU pelo deputado mineiro que admirava Sarney. A festa oferecida a Rosa teve menos pompas e fitas que as exibidas na chegada de Alexandre de Moraes ao comando do Tribunal Superior Eleitoral. Da mesma forma que o atual, nenhum ex-presidente da República deu as caras por lá. Nenhuma surpresa. Aos 73 anos, Rosa ficará no cargo só até outubro de 2023. Até aposentar-se, será obediente à maluquice segundo a qual existe uma única forma de impedir que a democracia seja assassinada por Jair Bolsonaro: tratar a pontapés a Constituição e mutilar a machadadas o Estado de Direito.

Desde o parto do inquérito das fake news, vulgo inquérito do fim do mundo, abjeções que deixariam ruborizado o pior advogado da Coreia do Norte ganharam o status de “medidas necessárias à preservação de instituições ameaçadas por atos antidemocráticos”. Monitorada pelo decano Gilmar Mendes, a tropa que controla o Poder Judiciário é fortalecida por snipers do calibre de Luís Roberto Barroso (“Eleição não se vence, se toma”), Ricardo Lewandowski (“Se Dilma perder os direitos políticos com o impeachment, não conseguirá emprego nem como merendeira”), Edson Fachin (que proíbe a polícia de enfrentar bandidos e desarma os brasileiros honestos enquanto combate hackers homiziados na Macedônia do Norte) ou Luiz Fux “(Mexeu com um ministro, mexeu com todos”).

É compreensível que um tribunal dominado por tamanhas sumidades tenha escalado Alexandre de Moraes para desempenhar simultaneamente, num único inquérito, os papéis de vítima indignada, delegado de polícia à beira de um ataque de nervos, acusador que não perdoa sequer bebê de colo e magistrado que julga tudo a favor de si mesmo — até recursos que contestam medidas sem pé nem cabeça. O inquérito infame já consumiu milhares de páginas, cujo conteúdo permanece em sigilo. Assim, os alvos do carrasco não sabem sequer do que são acusados. Mesmo depois de assumir a chefia do Tribunal Superior Eleitoral, o impetuoso artilheiro segue agindo em duas frentes.

Num mesmo dia, por exemplo, enquanto o Moraes da eleição tentava sepultar a candidatura ao Senado do deputado federal Daniel Silveira, o Moraes das fake news mandou às favas os sólidos argumentos apresentados pela Procuradoria-Geral da República para que sejam respeitados os direitos constitucionais de oito empresários suspeitos de terem inventado outra brasileirice de hospício: o golpe de Estado via WhatsApp, urdido e consumado com desabafos eletrônicos. Baseado numa reportagem, Moraes determinou o cumprimento de mandados de busca e apreensão na casa dos cidadão que ousam apoiar a reeleição de Jair Bolsonaro. Também ordenou o bloqueio de contas bancárias e sociais dos “investigados pela Corte”.

A decisão de Moraes trucidou dois textos legais. Confiram o que dizem:

Artigo 129 da Constituição: Compete ao MPF promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; e requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais.

Parágrafo II do artigo 282 do Código de Processo Penal: “As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público”.

“Pessoas sem foro privilegiado perante o STF têm de ser investigadas e processadas na primeira instância”, explica a procuradora Thaméa Danelon. “Alguém que não tem foro no STF poderá ser processado na Corte apenas se for comprovado o envolvimento em crime cometido por um indivíduo com foro.” Thaméa lembra que o artigo 102 da Constituição especifica que têm direito a foro privilegiado o presidente e o vice-presidente da República, parlamentares, ministros de Estado, integrantes do Ministério Público Federal, ministros do STF e do Superior Tribunal de Justiça. Empresários não figuram na lista. Mais: a Procuradoria-Geral da República só foi notificada sobre o que aconteceria depois de Moraes ter ordenado a operação. Ministro que age assim não tem notável saber jurídico (se tem, faz de conta que esqueceu). Tampouco parece interessado em preservar a reputação ilibada, sem a qual ninguém pode jogar no Timão da Toga. São esses os dois requisitos exigidos pela Constituição. Quem não os preenche é um ministro inconstitucional.

Como a epidemia de truculências ilegais parece altamente contagiosa, vai se tornando mais extensa que muita motociata liderada por Bolsonaro. Neste fim de inverno, por exemplo, a juíza Marisa Gatelli, em ação numa comarca gaúcha a 90 quilômetros de Porto Alegre, ordenou a remoção de um outdoor com a inscrição DEUS PÁTRIA FAMÍLIA LIBERDADE. Marisa entendeu que a junção das quatro palavras “está ligada ao facismo”. (Assim mesmo: facismo, sem o s entre o a e o c.) O nome da cidade é Vale Real. A cabeça baldia da doutora não vale um tostão.

Título e Texto: Augusto Nunes, Revista Oeste, nº 130, 16-9-2022

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