domingo, 30 de julho de 2023

Atenção às falsas promessas

Georges Gusdorf

Os libertários de todos os matizes se desdobram em reivindicar da parte dos outros uma liberdade que eles nem sonham em fazer existir por seus próprios meios. É porque eles se apaixonam pela luta econômica social, que serve de álibi a sua anarquia moral e espiritual.

Tenho ficado muitas vezes chocado pela profunda desordem que caracteriza a vida particular de alguns teóricos mais evidentes da intelligentsia atual: é uma realidade que em geral tornamo-nos psicólogos porque nos falta o sentido psicológico, e sociólogos porque não temos o sentido social.

Esta fuga diante de sua sombra permite ao interessado de reportar para mais tarde o confronto com os verdadeiros problemas, com as dificuldades que pesam sobre a sua existência pessoal.

Assisti certa vez a um encontro sobre a reforma do ensino, organizado pelos partidos de esquerda. A tese em discussão consistia na afirmação de que era importante primeiro, e com toda a urgência, fazer a Revolução. Uma vez a luta de classes chegasse a seu termo e estivesse instaurada a sociedade sem classes, todos os problemas estariam resolvidos e, acessoriamente, os do ensino.

Levantou-se então um professor na assistência para dizer que a sua preocupação era saber se deveria continuar a ensinar a seus alunos o passado simples e imperfeito do subjuntivo, formas gramaticais que não se empregam mais no uso corrente. O infeliz professor teve de se calar sob vaias; todos caçoavam, perdidamente, do seu imperfeito do subjuntivo; a Revolução poria tudo em ordem e, daqui por diante, isso não tinha a menor importância.

Acontece o mesmo para muitos de nossos contemporâneos, com o problema da liberdade. O importante é a devastação geral, a ditadura e tudo que se lhe segue, nisto compreendido o gulag, o partido único, a supressão dos direitos do homem em geral. Uma vez realizado esse belo programa, uma desordem maravilhosa do contra ou do pró permitirá o advento da liberdade gloriosa dos adeptos de Marx e Mao.

Assim se encontra escamoteado o problema. Recusa-se a considerar o caso do indivíduo, apenas a “massa” é objeto da solicitude dos doutores da nova fé. É preciso pesquisar em bloco uma solução que, no pormenor, não interessa a ninguém, é preciso inquirir primeiro a Revolução e sua justiça, o resto será dado por acréscimo. Vê-se assim como a pressão revolucionária, atestada em toda a parte pela história contemporânea, poderia um dia negar-se a si mesma e dar aos cidadãos estas liberdades antes denunciadas como “formais” e “burguesas” que ela sempre recusou com obstinação.

Após sessenta anos de revolução soviética, estamos sempre no mesmo. E os augúrios nos dizem hoje que não há motivo para se espantar. A Revolução não pode dar seus frutos assim tão rapidamente; é preciso saber esperar. Propõe-se agora um futuro com vencimento tardio; alguns calculam um prazo de três séculos.

Se a liberdade prometida pelos revolucionários não é nem para hoje nem para amanhã, se ela está reservada aos bisnetos de nossos bisnetos, não tem mais nenhum sentido. Que se pensaria de um sujeito que economizasse dia após dia para constituir um capital pagável em trezentos anos? A liberdade não pode esperar; ela começa imediatamente.

Perante cada situação nova, insignificante ou importante, posso reagir ou não como homem livre. Porque não se trata de escolher a liberdade com L maiúsculo, mas de se pronunciar entre várias opções possíveis numa situação dada.

Os desafios estrondosos, as fanfarronadas não estão colocadas em questão; a liberdade consiste em recusar o conformismo e a facilidade, em se decidir no sentido de autenticidade e do valor.

O homem livre, ou, antes, o homem em busca da liberdade, é aquele que investiga arduamente o que deve fazer, o que deve pensar nos diversos momentos da sua vida, esforçando assim para viver de olhos abertos e de seguir, à foça de ensaios e erros, o mais fielmente possível, o caminho de sua existência.

Programa modesto e que não põe diretamente em causa o equilíbrio cósmico nem a ordem da humanidade, mas cuja aplicação deve começar aqui e agora.

As especulações metafísicas sobre a liberdade e a necessidade, os sistemas teológicos construídos em torno da predestinação, ou ainda as teorias políticas e sociais a propósito da democracia, da opressão e da revolução, não são sem objeto nem sem interesse. Mas estas considerações parecem de uma urgência secundária em relação a esta urgência primeira de dar um sentido à nossa vida no momento presente e nas horas que hão de vir.

Tudo se passa como se aqueles que se afervoram em reivindicar uma liberdade absoluta e imaculada recusassem ver a dificuldade muito mais modesta da afirmação de si na opacidade do mundo. O combate cotidiano é seguramente menos grandioso que a luta titânica evocada pelos amantes do apocalipse, mas a honestidade para consigo mesmo consiste em reconhecer que cada homem deveria engajar-se sobre as duas frentes; a metafísica não se exime da vida de cada dia – esta última se impõe a todos, enquanto a primeira é uma paixão honrosa, certamente, mas a maior parte da humanidade vive sem ela, é um luxo reservado a poucos.

Uma vez reconhecido esse desdobramento em escala e importância maior da indagação da liberdade no cotidiano, algumas questões contestadas perdem muito de sua importância, até se tornarem problemas acadêmicos.

Na existência banal dos homens, a alternativa não está nunca entre a liberdade e a necessidade, como se houvesse que escolher de maneira exclusiva entre uma e outra, num espaço vazio de toda presença, de toda tensão prévias.

Toda decisão se pronuncia no intervalo estreito que separa possibilidades concorrentes; a vontade pesa num sentido ou no outro; ela junta a pequena impulsão em virtude da qual a figura ambígua da situação tomará forma, conforme o consentimento do homem cujo destino está em questão.

O exercício prático da liberdade não se parece em nada com as iniciativas de um Deus criador; ele evoca antes o comportamento do remador na sua barca pesando sobre cada um dos seus remos e calculando o avanço da embarcação em função da resistência da água, da força da corrente e da velocidade do vento. A energia do homem se combina com estes elementos; às vezes mesmo ela é inferior à potência das coisas e o bote recua em vez de progredir.

O homem à procura de sua liberdade é este remador crispado sobre os remos que tenta obter o melhor de si mesmo para avançar com a corrente, tanto quanto necessário, apesar de tudo.

Título e Texto: Georges Gusdorf, in “Impasses e progressos da liberdade”, páginas 63 a 67.
Digitação: JP, 30-7-2023

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