Georges Gusdorf
Os libertários de todos os matizes se desdobram em reivindicar da parte dos outros uma liberdade que eles nem sonham em fazer existir por seus próprios meios. É porque eles se apaixonam pela luta econômica social, que serve de álibi a sua anarquia moral e espiritual.
Tenho ficado muitas vezes
chocado pela profunda desordem que caracteriza a vida particular de alguns
teóricos mais evidentes da intelligentsia atual: é uma realidade que em
geral tornamo-nos psicólogos porque nos falta o sentido psicológico, e
sociólogos porque não temos o sentido social.
Esta fuga diante de sua sombra
permite ao interessado de reportar para mais tarde o confronto com os
verdadeiros problemas, com as dificuldades que pesam sobre a sua existência
pessoal.
Assim se encontra escamoteado
o problema. Recusa-se a considerar o caso do indivíduo, apenas a “massa” é
objeto da solicitude dos doutores da nova fé. É preciso pesquisar em bloco uma
solução que, no pormenor, não interessa a ninguém, é preciso inquirir primeiro
a Revolução e sua justiça, o resto será dado por acréscimo. Vê-se assim como a
pressão revolucionária, atestada em toda a parte pela história contemporânea,
poderia um dia negar-se a si mesma e dar aos cidadãos estas liberdades antes
denunciadas como “formais” e “burguesas” que ela sempre recusou com obstinação.
Após sessenta anos de
revolução soviética, estamos sempre no mesmo. E os augúrios nos dizem hoje que
não há motivo para se espantar. A Revolução não pode dar seus frutos assim tão
rapidamente; é preciso saber esperar. Propõe-se agora um futuro com vencimento
tardio; alguns calculam um prazo de três séculos.
Se a liberdade prometida pelos
revolucionários não é nem para hoje nem para amanhã, se ela está reservada aos
bisnetos de nossos bisnetos, não tem mais nenhum sentido. Que se pensaria de um
sujeito que economizasse dia após dia para constituir um capital pagável em
trezentos anos? A liberdade não pode esperar; ela começa imediatamente.
Perante cada situação nova,
insignificante ou importante, posso reagir ou não como homem livre. Porque não
se trata de escolher a liberdade com L maiúsculo, mas de se pronunciar entre
várias opções possíveis numa situação dada.
Os desafios estrondosos, as
fanfarronadas não estão colocadas em questão; a liberdade consiste em recusar o
conformismo e a facilidade, em se decidir no sentido de autenticidade e do
valor.
O homem livre, ou, antes, o
homem em busca da liberdade, é aquele que investiga arduamente o que deve
fazer, o que deve pensar nos diversos momentos da sua vida, esforçando assim
para viver de olhos abertos e de seguir, à foça de ensaios e erros, o mais
fielmente possível, o caminho de sua existência.
Programa modesto e que não põe
diretamente em causa o equilíbrio cósmico nem a ordem da humanidade, mas cuja
aplicação deve começar aqui e agora.
As especulações metafísicas
sobre a liberdade e a necessidade, os sistemas teológicos construídos em torno
da predestinação, ou ainda as teorias políticas e sociais a propósito da
democracia, da opressão e da revolução, não são sem objeto nem sem interesse.
Mas estas considerações parecem de uma urgência secundária em relação a esta
urgência primeira de dar um sentido à nossa vida no momento presente e nas
horas que hão de vir.
Tudo se passa como se aqueles
que se afervoram em reivindicar uma liberdade absoluta e imaculada recusassem
ver a dificuldade muito mais modesta da afirmação de si na opacidade do mundo.
O combate cotidiano é seguramente menos grandioso que a luta titânica evocada
pelos amantes do apocalipse, mas a honestidade para consigo mesmo consiste em
reconhecer que cada homem deveria engajar-se sobre as duas frentes; a
metafísica não se exime da vida de cada dia – esta última se impõe a todos,
enquanto a primeira é uma paixão honrosa, certamente, mas a maior parte da
humanidade vive sem ela, é um luxo reservado a poucos.
Uma vez reconhecido esse
desdobramento em escala e importância maior da indagação da liberdade no
cotidiano, algumas questões contestadas perdem muito de sua importância, até se
tornarem problemas acadêmicos.
Na existência banal dos
homens, a alternativa não está nunca entre a liberdade e a necessidade, como se
houvesse que escolher de maneira exclusiva entre uma e outra, num espaço vazio
de toda presença, de toda tensão prévias.
Toda decisão se pronuncia no
intervalo estreito que separa possibilidades concorrentes; a vontade pesa num
sentido ou no outro; ela junta a pequena impulsão em virtude da qual a figura
ambígua da situação tomará forma, conforme o consentimento do homem cujo
destino está em questão.
O exercício prático da
liberdade não se parece em nada com as iniciativas de um Deus criador; ele
evoca antes o comportamento do remador na sua barca pesando sobre cada um dos
seus remos e calculando o avanço da embarcação em função da resistência da
água, da força da corrente e da velocidade do vento. A energia do homem se
combina com estes elementos; às vezes mesmo ela é inferior à potência das coisas
e o bote recua em vez de progredir.
O homem à procura de sua
liberdade é este remador crispado sobre os remos que tenta obter o melhor de si
mesmo para avançar com a corrente, tanto quanto necessário, apesar de tudo.
Título e Texto: Georges
Gusdorf, in “Impasses e progressos da liberdade”, páginas 63 a 67.
Digitação: JP, 30-7-2023
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