sexta-feira, 21 de julho de 2023

A retórica travestida de ciência

Fausto Zamboni

(…)

Frederic Jameson confirma o caráter político dos Estudos Culturais, ao dizer que mais importante que a sua formulação rigorosa é a possibilidade de alianças sociais num contexto em que a nova direita combate estes estudos como politicamente corretos.

Trata-se de uma visão anti-intelectualista, de quem se preocupa menos com o conhecimento da própria posição do que com o reforço das suas fileiras no combate do adversário: não importa o que sejam os Estudos Culturais, desde que estejam alinhados à esquerda.

A estrita divisão da intelectualidade entre “amigos” e “inimigos” chega à total impossibilidade do diálogo quando a própria argumentação o racional [e catalogada como uma construção da razão burguesa, instrumento legitimador do status quo e ferramenta para oprimir os discordantes, que são classificados como idiotas ou loucos.

O que se chama “verdade” é antes “discurso legitimador” que impõe e ao mesmo tempo oculta a fonte do seu poder. É inútil argumentar que esta concepção pretende ser verdadeira, e não um mero discurso legitimador: qualquer alegação em contrário será avaliada não pelo seu conteúdo racional, mas pelo seu pretenso objetivo político, seja explícito ou camuflado, consciente ou inconsciente.

Não raro a discussão desvia-se para a intimidação pessoal: o oponente é acusado de ser agente da classe dominante, racista, homofóbico, sem nenhuma justificativa e sem a apresentação de provas, bastando a discordância intelectual para disparar o gatilho da insinuação maliciosa ou da acusação aberta.

Consentir no desvio do eixo de atenção da discussão racional para a acusação pessoal significa elevar o bullying à dignidade do debate acadêmico. Neste caso, não é mais possível discutir: é preciso desmascarar o estratagema e expor a atitude do oponente para que ele seja obrigado a voltar à discussão (ou a abandonar de vez o pseudo-diálogo).

Um dos segredos do sucesso dos estudos críticos é que eles se adaptam bem ao ensino massificado, liberando alunos e pesquisadores das dificuldades do estudo. Dividindo a “extensa república das letras em mocinhos e bandidos”, aliviam o aluno “do fardo da empatia imaginativa, das dificuldades da discriminação estética”.

O “inimigo” é apresentado com uma formulação tão rígida que é fácil combatê-lo e destruí-lo. Um exemplo dessa mentalidade está no livro Cultura letrada: literatura e leitura, de Márcia Abreu (2004), que condena os preconceitos da literatura erudita, especialmente as hierarquias e distinções valorativas – que seriam sempre parciais – desejando a convivência pacífica de todo tipo de leitura.

Os supostos preconceitos são simplificados até a deformação, tornam-se bonecos de palha que são facilmente vencidos na discussão farsesca.

A multiplicação de grupos religiosos, culturais, étnicos e até de gêneros sexuais que reivindicam direitos e defendem uma agenda abertamente política alterou profundamente o panorama acadêmico. O discurso acusador e vitimizador exacerbou as divisões e os ressentimentos.

“Nossa recém-descoberta sensibilidade”, diz Robert Hughes, “decreta que só a vítima pode ser o herói”, cuja condição decaída advém do “fato de lhe ter sido negada a paridade com a Besta Loira da imaginação sentimental, o homem branco heterossexual de classe média”.

A intelectualidade, concentrada na defesa da autoestima de cada grupo, de cada minoria, puerilizou-se. “É como se todo encontro humano fosse um ponto sensível, eriçado de oportunidades de involuntariamente distribuir, e receber, ofensas”.

Roger Kimball acredita que, para cacaterizar esse estado de espírito,  “provavelmente a palavra mais generosa que se poderia propor seri8a adolescente – afinal, o que poderia ser mais adolescente do que esse espírito de desprezo misturado com um narcisismo quase cômico?”

O cultivo ferrenho do amor-próprio e da autoestima não se adequa à imparcialidade necessária à prática intelectual.

Mas o objetivo de muitos não é compreender o9 mundo, e sim transformá-lo. Para isso, apelam a uma retórica travestida de ciência, a fórmula mesma do discurso ideológico.
O silogismo assume a forma da erística: o argumentador procura vencer o debate partindo de bases falsas ou premissas ocultas injustificáveis, camuflando ou realçando os dados que melhor se adequam à conclusão pré-existente.

(…)

Texto: Fausto Zamboni, in “Contra a Escola”, páginas 187, 188 e 189 
Digitação: JP, 21-7-2023  


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