As invenções da moral permissiva
Georges Gusdorf
“É proibido proibir”,
proclamavam as inscrições proféticas de maio de 1968; esta fórmula tornou-se
imperativo categórico da moral chamada “permissiva”, reação sadia e vigorosa
contra os tabus hipócritas, as proibições e os mandamentos que faziam a
infelicidade dos homens na sociedade burguesa e puritana de outrora.
O colete de ferro das
prescrições impostas por meio da autoridade à criança e ao adolescente, na
intenção de sufocar a livre expressão da espontaneidade natural não existe
mais. Ninguém tem o direito de fazer pressão sobre quem quer que seja para
forçá-lo a seguir o caminho que considera “correto”. Desde a idade mais tenra,
cada ser humano deve ser considerado como beneficiário da gloriosa liberdade
dos filhos de Deus.
Uma jovem senhora francesa
vivendo em Estocolmo me contava que lhe havia sucedido, numa grande avenida da
cidade, ter dado uma palmada em seu filho de cinco ou seis anos, o qual, de mau
humor, recusava absolutamente caminhar. Uma pequena multidão ameaçadora se
reuniu logo em torno da mãe culpada, que se salvou graças ao fato de ser
estrangeira, ainda no estágio da barbárie.
Diz-se ainda na Suécia que se, voltando para casa, acontecer encontrar seu filho a ponto de reduzir a frangalhos, com a serra ou o martelo, o piano do salão, você deve sobretudo abster-se de qualquer manifestação violenta que poderia traumatizar a delicada psicologia do querido rebento. A solução consiste em atirar-se ao chão num outro canto da peça ladrando alegremente; você desviará a atenção da criança que virá manifestar sua criatividade compartilhando com você essa nova brincadeira.
Neste venturoso país, na época, não se perseguia os jovens ladrões de automóveis, mas o proprietário do veículo abandonado na via pública e, portanto, o oferecido à cobiça dos transeuntes.
Na França também, a moral
burguesa e seus recalcamentos hipócritas acham-se em plena decadência. Esculturais
ou não, a nudez de todo sexo e de todo pelo exibem-se nas praias de verão sob o
olhar complacente da polícia. Notei, nos dias de menos calor, uma fórmula em
moda, impressa sobre os maiôs de alguns jovens: Did you take your pills
today? (Você já tomou a pílula hoje?). Aqueles que orgulhosamente arvoravam
este emblema de nosso tempo sobre seu peito viril desempenhavam o papel dos
homens-sanduíche da moral permissiva.
Mortos estão os tabus que nos
faziam tanto mal: os jogos do amor e do azar, os tormentos da adolescência, os
desesperos e as esperanças, as vãs solidões. A livre juventude de nosso tempo
sabe o quer e não deixa por menos. As palavras não assustam. O amor cedeu lugar
à sexualidade. A mulher e o homem, livres de toda falsa vergonha, se reconhecem
enfim para o que existem_ uma fêmea e um macho à procura da cópula.
Os muros das cidades cantam a
palavra de ordem e a liberdade de expressão graças às inscrições que fazem
vibrar o cinzento das superfícies verdadeiras. A displicência dos vestuários atesta
a reconquista do natural, tanto tempo dissimulado e deformado pelas convenções
artificiais da moda burguesa; da mesma forma a sadia indecência da linguagem
corrente, escrita e falada, atesta o declínio das restrições impostas pela
classe dominante.
Os meios de comunicação de
massa estão abertos a est5a nova franqueza: no rádio, na televisão, possantes
rapazes se exprimem com uma encantadora espontaneidade, e oferecem à admiração
das multidões o espetáculo de sua camisa aberta ao peito cabeludo, o avacalhamento
do discurso correndo a par da displicência do traje. Depois de 1968, os
estudantes fumam nas salas de aulas, enquanto se abstêm de fumar no cinema e no
metrô. Bastante incomodada por repetidas ondas de fumaça, uma senhora minha
amiga, professora numa universidade parisiense descobriu que os seus ouvintes se
deliciavam durante a lição com haxixe.
Liberdade do sexo, liberdade
da droga e da intoxicação, liberdade da pornografia, liberdade de todas as
propagandas ideológicas figuraram entre os novos direitos do homem e da mulher.
É preciso acrescentar à lista
o direito à violência, graças a qual o terrorismo entrou em nossa vida
cotidiana. Da Bretanha à Córsega, passando por Paris e os estaleiros de
construções das centrais energéticas, a explosão das bombas contribui para a
decoração sonora da existência!
Extrema-esquerda e
extrema-direita se confraternizam. Quanto à opinião pública, seus intérpretes
autorizados não se incomodam senão de saber se o atentado “foi reivindicado”.
Quando uma ação particularmente brilhante “não foi reivindicada”, os
jornalistas ficam justamente inquietos. Tudo volta à ordem uma vez o expedidor
identificado, como se “o direito à bomba” fizesse, para o futuro, parte das
liberdades fundamentais da pessoa humana.
O direito à bomba baliza um
limite. A cultura contemporânea conquistou definitivamente a possibilidade de
se exibir inteiramente nua, de praticar o amor ou defecar publicamente nas
telas dos cinemas; ela surripiou as crianças do controle dos pais, os alunos da
autoridade dos professores; exalta os loucos, as prostitutas e os criminosos de
toda espécie.
Todas estas aquisições da
liberdade culminam com o direito daqui para a frente reconhecido de fazer
explodir os outros e a si mesmo se for preciso. Bons espíritos já se interessam
pelo pequeno artefato artesanal que fabricará uma bomba atômica de bolso,
suscetível de anular uma porção do planeta, e talvez desencadear uma reação em
cadeia que porá fim ao reino da opressão humana na terra.
Este fogo de artifício
terminal seria a apoteose da permissividade, no remate de um suicídio coletivo,
concebido como o ato de uma liberdade radical.
Título e Texto: Georges
Gusdorf, in “Impasses e progressos da liberdade”, páginas 37 a 40.
Digitação: JP, 26-7-2023
Impasses e progressos da liberdade
O multiculturalismo assimilou, no fim das contas, o racismo e o moralismo que pretendia combater
A retórica travestida de ciência
A liberdade educacional
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