quinta-feira, 27 de julho de 2023

A moral permissiva

As invenções da moral permissiva

Georges Gusdorf

“É proibido proibir”, proclamavam as inscrições proféticas de maio de 1968; esta fórmula tornou-se imperativo categórico da moral chamada “permissiva”, reação sadia e vigorosa contra os tabus hipócritas, as proibições e os mandamentos que faziam a infelicidade dos homens na sociedade burguesa e puritana de outrora.

O colete de ferro das prescrições impostas por meio da autoridade à criança e ao adolescente, na intenção de sufocar a livre expressão da espontaneidade natural não existe mais. Ninguém tem o direito de fazer pressão sobre quem quer que seja para forçá-lo a seguir o caminho que considera “correto”. Desde a idade mais tenra, cada ser humano deve ser considerado como beneficiário da gloriosa liberdade dos filhos de Deus.

Uma jovem senhora francesa vivendo em Estocolmo me contava que lhe havia sucedido, numa grande avenida da cidade, ter dado uma palmada em seu filho de cinco ou seis anos, o qual, de mau humor, recusava absolutamente caminhar. Uma pequena multidão ameaçadora se reuniu logo em torno da mãe culpada, que se salvou graças ao fato de ser estrangeira, ainda no estágio da barbárie.

Diz-se ainda na Suécia que se, voltando para casa, acontecer encontrar seu filho a ponto de reduzir a frangalhos, com a serra ou o martelo, o piano do salão, você deve sobretudo abster-se de qualquer manifestação violenta que poderia traumatizar a delicada psicologia do querido rebento. A solução consiste em atirar-se ao chão num outro canto da peça ladrando alegremente; você desviará a atenção da criança que virá manifestar sua criatividade compartilhando com você essa nova brincadeira.

Neste venturoso país, na época, não se perseguia os jovens ladrões de automóveis, mas o proprietário do veículo abandonado na via pública e, portanto, o oferecido à cobiça dos transeuntes.

Na França também, a moral burguesa e seus recalcamentos hipócritas acham-se em plena decadência. Esculturais ou não, a nudez de todo sexo e de todo pelo exibem-se nas praias de verão sob o olhar complacente da polícia. Notei, nos dias de menos calor, uma fórmula em moda, impressa sobre os maiôs de alguns jovens: Did you take your pills today? (Você já tomou a pílula hoje?). Aqueles que orgulhosamente arvoravam este emblema de nosso tempo sobre seu peito viril desempenhavam o papel dos homens-sanduíche da moral permissiva.

Mortos estão os tabus que nos faziam tanto mal: os jogos do amor e do azar, os tormentos da adolescência, os desesperos e as esperanças, as vãs solidões. A livre juventude de nosso tempo sabe o quer e não deixa por menos. As palavras não assustam. O amor cedeu lugar à sexualidade. A mulher e o homem, livres de toda falsa vergonha, se reconhecem enfim para o que existem_ uma fêmea e um macho à procura da cópula.

Os muros das cidades cantam a palavra de ordem e a liberdade de expressão graças às inscrições que fazem vibrar o cinzento das superfícies verdadeiras. A displicência dos vestuários atesta a reconquista do natural, tanto tempo dissimulado e deformado pelas convenções artificiais da moda burguesa; da mesma forma a sadia indecência da linguagem corrente, escrita e falada, atesta o declínio das restrições impostas pela classe dominante.

Os meios de comunicação de massa estão abertos a est5a nova franqueza: no rádio, na televisão, possantes rapazes se exprimem com uma encantadora espontaneidade, e oferecem à admiração das multidões o espetáculo de sua camisa aberta ao peito cabeludo, o avacalhamento do discurso correndo a par da displicência do traje. Depois de 1968, os estudantes fumam nas salas de aulas, enquanto se abstêm de fumar no cinema e no metrô. Bastante incomodada por repetidas ondas de fumaça, uma senhora minha amiga, professora numa universidade parisiense descobriu que os seus ouvintes se deliciavam durante a lição com haxixe.

Liberdade do sexo, liberdade da droga e da intoxicação, liberdade da pornografia, liberdade de todas as propagandas ideológicas figuraram entre os novos direitos do homem e da mulher.

É preciso acrescentar à lista o direito à violência, graças a qual o terrorismo entrou em nossa vida cotidiana. Da Bretanha à Córsega, passando por Paris e os estaleiros de construções das centrais energéticas, a explosão das bombas contribui para a decoração sonora da existência!

Extrema-esquerda e extrema-direita se confraternizam. Quanto à opinião pública, seus intérpretes autorizados não se incomodam senão de saber se o atentado “foi reivindicado”. Quando uma ação particularmente brilhante “não foi reivindicada”, os jornalistas ficam justamente inquietos. Tudo volta à ordem uma vez o expedidor identificado, como se “o direito à bomba” fizesse, para o futuro, parte das liberdades fundamentais da pessoa humana.

O direito à bomba baliza um limite. A cultura contemporânea conquistou definitivamente a possibilidade de se exibir inteiramente nua, de praticar o amor ou defecar publicamente nas telas dos cinemas; ela surripiou as crianças do controle dos pais, os alunos da autoridade dos professores; exalta os loucos, as prostitutas e os criminosos de toda espécie.

Todas estas aquisições da liberdade culminam com o direito daqui para a frente reconhecido de fazer explodir os outros e a si mesmo se for preciso. Bons espíritos já se interessam pelo pequeno artefato artesanal que fabricará uma bomba atômica de bolso, suscetível de anular uma porção do planeta, e talvez desencadear uma reação em cadeia que porá fim ao reino da opressão humana na terra.

Este fogo de artifício terminal seria a apoteose da permissividade, no remate de um suicídio coletivo, concebido como o ato de uma liberdade radical.

Título e Texto: Georges Gusdorf, in “Impasses e progressos da liberdade”, páginas 37 a 40.
Digitação: JP, 26-7-2023

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