sábado, 18 de janeiro de 2014

A cultura do descartável

José Carlos Bolognese
Em sua condenação ao aborto, o papa Francisco qualifica-o como “prova da cultura do descartável que desperdiça pessoas da mesma forma que desperdiça comida”. Para o pontífice, a interrupção voluntária da gravidez é “horrível”.

No seu encontro anual com diplomatas, o pontífice apontou a fome como um dos aspectos do que chama de “cultura do descartável”.

Lamentavelmente, não são objetos de descarte apenas os alimentos ou supérfluos, mas também os próprios seres humanos, que vêm sendo descartados como coisas não necessárias.

Ilustração: Latuff, 2008
Infelizmente esta é a carapuça que nosso país pode (e deve) vestir sem receio, mas não só na questão do aborto, tema por demais espinhoso para que eu – que sou contra – me ocupar neste texto.  Não faltam porém, tantos outros vergonhosos descartes, que a carapuça não seja tão nossa, como nossas são cinco copas do mundo.

Somos os campeões do desperdício de qualquer bem que a Providência, talvez distraidamente, tenha posto à nossa disposição. Nossos descartes são homéricos, oceânicos e... cruéis.

Mas, como diz o papa, talvez nosso maior talento se mostre com mais intensidade no desperdício de pessoas, seres descartáveis que em suas várias camadas existenciais são tratados como não capazes de cuidar de si próprios. Os que demonstram autonomia e valorizam o mérito como meio de suas conquistas são tachados de individualistas, reacionários, capitalistas, burgueses e outras mentiras. Mas aos dependentes do Estado são dadas apenas duas opções: ou se tornam parasitas dependentes para uso eleitoreiro ou são abandonados à própria sorte, tornando-se o condenável descarte humano de que fala o papa Francisco.

A ideia absurda de que a contínua doação de “bolsas” de todo tipo possa, sem contrapartida, gerar cidadãos mais úteis a si mesmos e ao país é algo em que, com certeza, nem seus mentores e “doadores” acreditam. Só prevalece pelos interesses subalternos, pois nada aí é feito com o espírito de socorro na hora da aflição – algo louvável – nem com vistas à emancipação do ser – o certo a fazer - mas porque se cria uma clientela com títulos de eleitor nas mãos, totalmente alheia aos reais direitos de se realizarem como seres NÃO descartáveis, anestesiados de seu potencial transformador – pois toda pessoa o tem – e de sua própria história.

Mercadoria humana, foto: Pedro Medeiros, 2011
Se notarem bem, verão que nós, brasileiros, somos um povo sem história. Podemos ter registros de fatos como outros povos, mas a história é muito mais que isto. A história é a lanterna na popa para que o futuro, para onde se aponta a proa, não se faça em escuridão. Mas nós, desprezando a experiência coletiva - a nossa própria e a da civilização até aqui - estamos sempre começando alegremente do zero como se a roda, por exemplo, precisasse ser mais uma vez inventada, agora por nós. Tal é a visão desse socialismo bocó que flagela este país nos dias de hoje e ameaça nos assombrar por muitos anos à frente, pois...

Somos os donos do tempo. Não precisamos planejar nada a longo prazo porque isto é coisa de povos estressados. Se tivéssemos algum respeito pela história, seria possível verificar que não mais do que quatro décadas atrás largamos na frente – só para citar uns poucos – da Coréia do Sul, de Singapura e de Taiwan. Bem... continuamos na frente deles... em futebol, carnaval e novelas....

É claro que esse domínio que nós, brasileiros, temos sobre os elementos fundamentais da vida, esta fantástica “superioridade” em relação a outros povos tem seu preço. A começar porque é uma mentira. E a seguir porque mesmo sendo mentira, gera sim, resultados, os mais nefastos possíveis, um deles, o que se passa agora mesmo comigo e mais umas dez mil pessoas que trabalharam por décadas na aviação comercial e tiveram a ousadia de preparar sua própria retirada de cena e a infelicidade de topar com a incerteza jurídica de contratos. Fôssemos um povo (mais que o povo, o governo e o judiciário) que desse valor ao que foi bem construído no passado, a Varig ainda estaria servindo ao Brasil e aos brasileiros. Mas ela foi descartada obviamente porque este governo – embora também servido por ela – não a tinha como servidora do país, mas talvez como um ativo para servir aos seus próprios interesses. Os danos colaterais, os descartes de trabalhadores e aposentados não entram na contabilidade criativa dos petralhas como prejuízo - pelo menos até agora têm de fato entrado como... lucro.

O mal é que neste solo fértil do... “em se plantando... tudo (corrupção, ignorância, hipocrisia,) dá”, a colheita que obtemos – e que não é exclusiva daqui por sinal - graças à nossa engenhosidade tem nos propiciado as safras mais exuberantes de atraso, criminalidade e injustiças de todos os tipos.

Oxalá este 2014 seja o ano da virada, embora qualquer coisa que venha traga consigo o gosto amargo do tempo não vivido, das perdas provavelmente irrecuperáveis de bens e das tristemente desperdiçadas vidas humanas.

Eis aí cultura do descartável.
Título e Texto: José Carlos Bolognese, 18-01-2014

Mas a passividade dos variguianos também contribui como uma espécie de “autodescarte.”

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