Maria João Marques
Alguma coisa está a dar
argumentos às boas almas esclarecidas que ensaiam novamente uma equivalência
entre todas as malvadas religiões que, como se sabe, só provocam caos e
mortandade.
Não sei se é a realidade se
são as direções dos jornais europeus, mas alguma coisa está a dar argumentos às
boas almas esclarecidas (que, aqui, é sinónimo de ateias prosélitas) que
ensaiam novamente uma equivalência entre todas as malvadas religiões que, como
se sabe, só provocam caos e mortandade. Tal como fizeram depois do 11 de
Setembro. Ora vejam.
Um jornal judaico
ultra-ortodoxo apagou as três líderes europeias do sexo feminino da fotografia
da manifestação de Paris do último domingo. Parece que o corpo feminino não é
modesto (que bom, diria eu, mas os senhores ultra-ortodoxos não concordam) e deve
por isso ser tapado. Como as três senhoras estavam bastante agasalhadas, que
estava frio, presumo que as caras femininas também não sejam modestas.
Na Arábia Saudita alcançou-se
uma importante conclusão teológica: os bonecos de neve são anti-islâmicos. Incitam,
por alguma razão misteriosa, à luxúria e ao eroticismo. (Talvez seja o facto de
tanta mulher totalmente tapada levar até a entusiasmos com as formas
arredondadas dos bonecos de neve, ou quiçá um eventual prazer sensorial
enquanto se molda a neve com as mãos. Penso que é melhor não inquirirmos mais.)
E as vozes dos que se convencionou chamar muçulmanos moderados (são os que não
apregoam os benefícios de matar infiéis, incluindo os ultra-reacionários) já se
fizeram ouvir com nova ofensa à conta da primeira capa do Charlie Hebdo depois
do atentado. Sem perceberem que, a ser provocação, é muito pálida depois da
gigantesca provocação que é um ato terrorista com mortes. Regressando à Arábia
Saudita, país com tão simpático regime, o blogger contestatário Raif Badawi já
recebeu as primeiras 50 chicotadas (públicas) e iniciou a pena de dez anos de
prisão por ‘insultos ao islão’.
Perante isto, o que se fez do
lado da Igreja Católica por estes dias? Bem pior. O Papa Francisco associou-se
ao movimento pela amamentação em público e uma revista francesa republicou
capas do Charlie Hebdo satirizando papas e até Jesus Cristo.
Digo eu: ainda bem que a
clique multicultural europeia tem tudo controlado. Na Grã-Bretanha protegeu uma
tentativa de islamizar a educação pública na zona de Birmingham e tenta-se
fingir que os crimes ditos de honra não são um sintoma alarmante que vem das
comunidades muçulmanas. Theo van Gogh foi assassinado porque era um provocador
– teve o que mereceu – e Ayaan Hirsi Ali precisou de se refugiar nos Estados
Unidos, que pela progressista Holanda era vista como uma maçadora que
incomodava gente suscetível e obrigava a polícia a fornecer-lhe (a contragosto)
segurança.
O antissemitismo dispõe do
judaísmo, mesmo aquele que é mainstream
e apelativo, que há gente que aprecia mais as sociedades islâmicas opressivas
do que o imperfeito mas democrático e liberal Israel.
E do cristianismo trata a boa
esquerda anticlerical, onde ainda não se recuperou das crises da adolescência e
das saudáveis contestações da idade à cultura judaico-cristã onde cresceram. O
Podemos, em Espanha, fala já em terminar as celebrações da semana santa em
Sevilha. Valha-nos isso. Alguém que entenda que todas as manifestações de
cristianismo têm de ser banidas do espaço público – ao mesmo tempo que nos
convida a sermos tolerantes, abraçarmos culturas diversas e aprendermos com os
bons valores muçulmanos.
Com sorte também lidarão
convenientemente com os europeus muçulmanos sensatos, como o presidente de
câmara municipal de Roterdão, que aos imigrantes muçulmanos na Europa
aconselhou (mal foi eleito) pararem de se ver como vítimas e partirem se não se
quisessem integrar; e repetiu o conselho de forma mais gráfica depois do
atentado ao Charlie Hebdo.
Um apontamento final sobre as
reações ao terrorismo do passado recente e do mais distante.
António Costa tem uma
perturbadora tendência de se aproveitar politicamente da desgraça alheia. Desta
vez foi um atentado terrorista, que deu a boa ideia ao líder do PS de reunir em
frente à sede da CML inúmeros socialistas eminentes (os oficiais e Adriano
Moreira) para uma fotografia com a folha ‘je suis Charlie’. Não fica bem usar
um edifício público nem vítimas de terrorismo para aproveitamentos partidários,
mas há mais que se diga da fotografia.
Não quero fazer parte dos
censores de Charlie que houve por cá nos últimos dias. Quem quiser ser Charlie,
seja. Mas convém lembrar que nenhum dos senhores que se fotografou com ar
pesaroso em frente à CML manifestou qualquer incómodo pela posição do governo
português – expressa através do MNE Freitas do Amaral, depois explicitamente
apoiado por Sócrates (antes de ter sido assaltado pelo grande amor à liberdade
de expressão; pelo menos quando é a sua, bem entendido) – face à violência e
ameaças do mundo islâmico aquando da primeira impressão das caricaturas de
Maomé num jornal dinamarquês.
A posição oficial do PS foi,
então, de condenar a ‘provocação’ que foram as caricaturas; ‘não era essencial’
condenar a violência, mais relevantes que a liberdade de expressão eram ‘as
ofensas enormes que tinham sido feitas a toda a comunidade islâmica com a
publicação dos cartoons’ (Público, 2/3/2006). Os protestos da direita
parlamentar face a esta posição do governo descartaram-se com a sobranceria
socrática costumeira.
Costa e companheiros de
fotografia já são Charlie. Para evidenciarem coluna vertebral só lhes falta
repudiarem a ignomínia do seu partido em 2006.
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