Gabriel Mithá Ribeiro
O centro de investigação de
Boaventura de Sousa Santos e de José Manuel Pureza serve-se da ciência e
utiliza o erário público para legitimar, sofisticar e exportar a violência
social e política.
Imagine-se um centro de
investigação universitário de um país árabe simpaticamente financiado porque as
entidades de supervisão e avaliação académicas o consideram de excelência. O
centro reunia uma equipa de investigadores que, após aturado trabalho de campo
em dois países da Europa Ocidental com segmentos da população definidos como
marginalizados, concluía que os comportamentos criminosos desses indivíduos
eram fundamentais para a transformação das realidades estudadas em prol da
justiça social. Nessas e noutras sociedades da Europa Ocidental.
Os investimentos do estado
árabe eram ainda recompensados pela publicação em livro dos resultados da
investigação, conhecimento científico que passaria a ser partilhado pelas três
sociedades envolvidas, árabe e europeias, e outras mais.
Esse não é um mundo meramente
ficcional graças ao controlo, ao longo de décadas, de certos meios
universitários pelas extremas-esquerdas. Não é necessário procurar longe.
O estado português, através da
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), financiou uma investigação sobre
a delinquência juvenil nas cidades da Praia, em Cabo Verde, e de Bissau, na
Guiné-Bissau. Dois estados soberanos. O trabalho foi da responsabilidade
científica do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra,
dirigido por Boaventura de Sousa Santos. Contou com a participação dos
investigadores José Manuel Pureza, Sílvia Roque, Kátia Cardoso, Redy Wilson
Lima, Lorenzo I. Bordonaro, Marta Peça, Ulrich Schiefer e Joana Vasconcelos. Os
resultados foram publicados, em 2012, no livro “Jovens e trajetórias de
violências: os casos de Bissau e Praia” cujo conteúdo equivale ao retratado nos
dois primeiros parágrafos.
Uma vez que a investigação do
CES atenta, no essencial, contra as mais elementares regras de construção do
saber sobre as sociedades e contra os deveres cívicos, sociais, morais e de
relações entre povos exigíveis às universidades publiquei uma análise crítica
sobre o assunto vai para dois anos. A resposta tem sido o silêncio. No
intervalo nunca faltaram protestos, em Portugal, contra os cortes ao
financiamento à investigação universitária, protestos em muito alimentados
pelos que passam ao largo dos reparos à mediocridade do que produzem.
Este tipo de relação com a
crítica constitui um dos enigmas do enfeudado meio universitário
“progressista”. Ou ignora ou, quando não pode, o sistema faz cair a crítica no
esquecimento para seguir em frente inabalável, impante de convicções.
Há pouco mais de uma década
foi elucidativo o episódio originado pelas apreciações fundadas do cientista
António Manuel Baptista, publicadas em 2002 e 2004, contra a obra de Boaventura
de Sousa Santos intitulada “Um discurso sobre as ciências”, originalmente
publicada em 1987. De então para cá a última teve mais de uma dezena de
reedições que serviram gerações e gerações de estudantes universitários
formatadas pelo “obscurantismo e irresponsabilidade”, o subtítulo do primeiro
dos textos de António Manuel Baptista.
O facto é que as críticas
elaboradas por um académico ao qual não se conhece falta de rigor científico,
mas estranho ao meio “progressista”, foram rapidamente votadas ao esquecimento.
O livro visado seguiu de vento em popa nos meios universitários por mais de uma
década com direito a mais umas quantas reedições apoiadas por milhões de euros
de financiamentos públicos a investigações científicas por ele inspiradas. Uma
das quais publicada em livro em 2012, tema deste texto.
No decurso da última década,
os universitários que vão contactando com o génio de Boaventura de Sousa Santos
não foram por norma incentivados a confrontar o texto original que projetou o
seu mestre com a crítica dirigida ao mesmo por António Manuel Baptista para
pensarem por eles mesmos. Um ambiente universitário paroquial que protege
vícios intelectuais desta forma e natureza não é merecedor de grande respeito e
muito menos de financiamentos públicos. Mas também uma sociedade indiferente a
tais práticas está longe de ambicionar o melhor para si mesma.
Fazer ou não críticas a certos
meios académicos, fundamentadas que sejam, resultam em nada. Se os governos se
contam entre as entidades mais escrutinados nas nossas sociedades, e ainda
assim podem ser nocivos, tal escrutínio é muitas vezes histericamente agitado
para escamotear o papel bem mais nefasto de certos poderes instalados em
universidades, sindicatos ou comunicação social, posto que sobre os últimos não
incide um escrutínio social ou dos pares minimamente razoável.
O estudo do CES, pelo que
representa, é merecedor de publicidade para que a mediocridade se anule a si
mesma. De modo sistemático e deliberado, os investigadores académicos colocaram
o foco das suas análises nos agressores criminais. Por aí não viriam males ao
mundo se o resultado não fosse a descoberta de fundamentos científicos que
permitem detetar em jovens delinquentes das cidades da Praia e de Bissau uma
miríade de afro-românticos Che Guevaras suburbanos, a fonte da esperança da
transformação futura para melhor daquelas sociedades. O estudo não se coíbe de
recorrer depreciativamente ao conceito adjetivado de “paz liberal” (apenas
“paz” não bastava), a paz social que supostamente domina e perverte as
sociedades da atualidade, garantida à custa da opressão dos desfavorecidos e da
força policial. Esta é a causa da “violência estrutural”, outro conceito
adjetivado definido em rodapé na página 152 do livro.
De acordo com a visão
científica em vigor no CES, esse tipo de paz social deve ser substituído por um
outro. Desta feita os novos amanhãs que cantarão talvez espoletem em África e
Coimbra será finalmente libertada de opressões liberais, neoliberais e de uma
polícia opressora ao serviço dos ricos.
Nas diversas abordagens do
estudo científico, as vítimas de crimes cometidos nas cidades da Praia e de
Bissau são praticamente suprimidas enquanto objetos com interesse sociológico
ou antropológico. É como se as graves consequências quotidianas da
criminalidade nas sociedades africanas da atualidade fossem as mesmas que em
Coimbra e arredores e como se o crime não fosse, ele mesmo, causador de
pobreza.
De resto, no último meio
século muitas sociedades africanas foram diligentes em gerar problemas mais do
que suficientes para os próximos cem anos. Da explosão demográfica à segurança
urbana; do saneamento urbano à distribuição da riqueza; da saúde à qualidade do
ensino; da feitiçaria ao civismo; do emprego ao trânsito; do terrorismo às
epidemias; do ambiente à simples estabilidade e previsibilidade da vida de
todos os dias. Entre outros. Não quer dizer que África seja só isso. O que
significa é que as indústrias ideológicas exportadoras das esquerdas europeias
que viveram tempos de hiperprodução no último meio século – as principais
correntes utópicas inspiradoras dos destinos pós-coloniais do continente e com
as universidades como unidades de produção de excelência – bem que poderiam
suspender a laboração por umas décadas. O “stock” acumulado não se esgotaria e
talvez se poupassem as réstias de esperança que, apesar de tudo, os africanos
sempre reinventam.
Depois de um manancial de
atropelos às mais elementares regras de construção do saber sobre as
sociedades, como o afastamento deliberado do esforço de neutralidade axiológica
(leia-se Max Weber ou Georg Simmel) ou a denegação da orientação pela
amoralidade ética (leia-se Sigmund Freud), Sílvia Roque e Kátia Cardoso são
cristalinas no par de grandes conclusões da investigação científica em que
participaram. Primeira, a ciência social do CES torna evidente a necessidade de
“(…) enfrentar a progressiva e consequente deslegitimação e criminalização da
violência” (p.295), isto é, a violência social e política é legítima, útil e
desejável como atestam as evidências empíricas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.
Segunda, importa “(…) repensar o significado e as possibilidades da resistência
e recusar a estreiteza de definição do que pode ser considerado político (…)”
(p.296), isto é, os pensamentos e as práticas políticas sem violência, mesmo
nas democracias, não passam de manifestações menores ou cínicas, nem que para
contrariá-las seja necessário glorificar a delinquência juvenil. Infere-se,
portanto, que o CES legitima cientificamente o terrorismo.
Note-se a particularidade
destas teses científicas de orgia da violência serem desenvolvidas no âmbito do
Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade
de Coimbra. A ficção de Orwell foi suplantada em rigor pelos cientistas
sociais.
O centro de investigação de
Boaventura de Sousa Santos e de José Manuel Pureza, e de outros, serve-se da
ciência, transforma uma universidade pública em barriga de aluguer e utiliza o
erário público destinado ao financiamento à investigação para legitimar,
sofisticar e exportar a violência social e política. Na impossibilidade de
fazer germinar tais barbaridades em Coimbra, empenha-se em exportá-las para
Cabo Verde e Guiné-Bissau, como se estas e outras sociedades africanas
necessitassem de mais convulsões e violências. Se esta atitude não constitui
uma afronta da Universidade de Coimbra à inteligência mais comum e à vida
quotidiana dos africanos, resta-me questionar a utilidade das independências.
O CES existe para provar a
existência de relações de parentesco entre certas instituições universitárias e
a instigação da violência social e política e da delinquência.
É para isso que servem as
universidades? A Universidade de Coimbra não tem reitor? Serão legítimos e
fiáveis os critérios que levam a FCT a considerar o CES um seu laboratório
associado, isto é, um dos raros nichos de excelência científica em Portugal que
lhe permite consumir avultados milhões de euros ano após ano? É assim que o
governo português vem garantindo, promovendo e investindo na estabilidade da
vida social, na qualidade das suas instituições e na melhoria das relações com
outros estados soberanos? Os governos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau não têm
nada a ver com o assunto?
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