Maria João Marques
Aprenda-se com a II Guerra que
o apaziguamento é uma opção pela paz podre e não pela paz. E que Obama, o
Chamberlain do nosso tempo, vai, em 2017, deixar um mundo bem mais perigoso do
que o de 2009.
No fim de semana fui ver O Jogo da Imitação. Gostei, mas bastava,
dado o tema (máquina Enigma, descodificadores de Bletchley Park, recolha de
desinformação e fornecimento de desinformação), que não fosse um tremendo
insulto à inteligência e ao dinheiro gasto no bilhete para me contentar.
Neste caso, como em tantos
outros, distancio-me de Hitler para concordar com Churchill. Enquanto o alemão
desconfiava dos serviços de informações e desprezava os espiões, Churchill
protegia-os, criava organismos destinados a sabotagens e operações clandestinas
e dava-lhes a ordem de ‘incendiar a Europa’ e deliciava-se com os planos mais
ousados a que se entregavam os agentes secretos.
Se a esta reverência pelas
histórias de espionagem e contra-espionagem acrescentar o ingrediente Segunda
Guerra Mundial, o resultado são duas prateleiras inteiras (incluindo livros
encavalitados) de uma estante da minha sala cheias de livros. Estão lá os vários
volumes de British Intelligence in the Second
World War de F H Hinsley. A história do famoso e infame Special Operations
Executive (o tal que devia deitar fogo à Europa, que se dedicava a um tão
apelativo ungentlemanly warfare – uma
espécie de guerra sem maneiras – e que dava oportunidades de redenção aos
jovens com tendências criminosas como o Basil Seal, de Evelyn Waugh, e a jovens
senhoras aventureiras à procura de escapar aos plácidos destinos femininos
pré-determinados) de MRD Foot e outro volume que clama contar a ‘história
secreta’ do já secreto SOE. Uns tantos tomos dedicados ao MI6. Quase toda a
produção livresca de John Lukacs – autor a quem, esclareça-se, não se deve
levar a mal já ter sido lido e até apreciado por José Sócrates.
Há os livros de memórias de
Churchill sobre a guerra. Vários Martin Gilbert. E muitos sobre a vida na
Grã-Bretanha durante a guerra. Como era a alimentação com o racionamento. Como
se vestiam e que alterações na roupa trouxe a guerra. As alterações na
estrutura familiar provocadas pelo recrutamento dos homens para as forças
armadas, pelos empregos que as mulheres ocuparam em todo o lado, pelo
afastamento das crianças das cidades em fuga aos bombardeamentos. Até tenho o
manual das aulas do SOE, que me será certamente útil se alguma vez necessitar
de arrombar a porta de minha casa.
A Segunda Guerra Mundial tem
alguns paralelos curiosos com o presente e os perigos do extremismo islâmico (e
não apenas do terrorismo). Os nazis eram um grupo de loucos dispostos a tudo,
com um tipo particular de fé ateia que não está muito longe da intransigência
fundamentalista islâmica, e que se tornaram problemáticos precisamente porque
não podiam ser avaliados pelos parâmetros estabelecidos: a lógica intrínseca
diferente impedia que se soubesse o que esperar daquele regime onde a sensatez
e a racionalidade pareciam não entrar.
Tal como agora se chama
moderados a todos os clérigos e políticos islâmicos que não apoiam
explicitamente atos terroristas (mesmo aos reacionários que defendem aberrações),
também então se supunha que ‘moderados’ como Goering poderiam mudar o regime
por dentro.
A discussão ética sobre os
ataques com drones assemelha-se à das bombas V1 e V2. Philip Ziegler, no seu London at War, conta como os britânicos
já moídos por anos de guerra os sentiam particularmente cruéis por serem
enviadas de um local seguro. Ao contrário dos bombardeamentos aéreos, em que os
pilotos da Luftwaffe arriscavam (e muitos perdiam) a vida nos céus ingleses.
Durante anos, mediante o
crescente perigo nazi, França e Grã-Bretanha escolheram o apaziguamento. No
mundo ocidental ela prolifera atualmente em todas as cabeças bem pensantes que
se repugnam com a sobranceria europeia e americana de se orgulharem dos seus
valores (democracia, liberdade e mais umas coisas enfadonhas) e até os
promoverem aqui e ali noutras partes do mundo. Ou que veem com desconcertante
bonomia a violência sobre as mulheres e os homossexuais no mundo islâmico – ao
mesmo tempo que por cá gritam ‘machismo’ e ‘homofobia’ de cada vez que alguém
questiona levemente direitos de abortar ou discorda de qualquer pormenor sobre
orientação sexual.
O apaziguador-mor dá pelo nome
de Barack Obama. Eleito, praticou uma aceitação acrítica de todas as
barbaridades correntes no Médio Oriente. Fez um infame discurso no Cairo onde
sancionou a supressão dos direitos humanos das mulheres no mundo islâmico.
Tentou uma aproximação ao Irão, que a desprezou, e viu os protestos (reprimidos
com violência e sangue) aquando da fraude eleitoral de Amhadinejad em 2009 como
um enfado destinado a dar-lhe cabo da narrativa de que o de Teerão era um
governo legítimo. Retirou a correr do Iraque, abandonando o país ao que viria a
ser o ISIS. Desacertou em tudo quanto pôde na forma como respondeu à Primavera
Árabe.
O Chamberlain do nosso tempo
vai, em 2017, deixar um mundo bem mais perigoso do que o de 2009.
Não que eu recuse de todo o
apaziguamento. Por razões diferentes dos seus autores, com a sua incapacidade
de perceber que do lado oposto estão loucos que não medem sucesso e falhanço
pelo número de pessoas vivas e pela qualidade de vida das populações, como nós
costumamos. Mas porque cada vez mais me convenço que uma guerra é tão maléfica
como uma paz podre. A decisão por uma ou por outra não obedece a leis gerais
mas a circunstâncias concretas.
Pelo menos aprenda-se com a
Segunda Guerra Mundial que o apaziguamento é uma opção pela paz podre e não
pela paz.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
21-1-2015
Relacionados:
Texto fantástico. Vou pesquisar proporção de mortos na segunda guerra versus atualmente nesta paz podre.
ResponderExcluirEncontrei na internet já disponível em PDF Volume 9
ResponderExcluirEavesdropping on Hell:
Historical Guide to Western Communications Intelligence and the Holocaust, 1939-1945
Também;
Diplomacy and Intelligence during the Second World War de F. H. Hinsley, mesmo autor de
British Intelligence in the Second World War
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ExcluirConferiu a proporção de mortos versus paz atual?