Rui Ramos
Poderá a esquerda
social-democrata ser substituída pela esquerda radical? E a direita
liberal-conservadora pela direita nacionalista? A Europa pode ter entrado
noutra fase bem distinta da sua história
Durante as últimas semanas, a
pessoa mais entusiasmada com a perspectiva de uma vitória do Syriza na Grécia
não foi Francisco Louçã: foi Marine Le Pen. O quê, a líder da “direita
nacionalista” francesa feliz com o acesso da “esquerda radical” grega ao poder?
Sim, exactamente. Le Pen, aliás, não poupou as palavras: na Grécia soprava “um feliz vento de democracia”, augurando uma “vitória do
povo e dos seus representantes contra a oligarquia europeia e a grande
finança”. Há seis dias, foi ainda mais clara: “Sim, nós esperamos a vitória do Syriza!” Nada disto nos
devia espantar, e só nos ajudará a perceber o que poderá estar em causa na
Grécia, e que é muito mais do que a chamada “austeridade” ou mesmo a
configuração actual da moeda única europeia.
As elites políticas europeias
estão a ser apertadas por dois tipos de movimentos populistas: um de “esquerda
radical”, como o Syriza na Grécia, e outro de “direita nacionalista”, como a
Frente Nacional em França. O credo dos primeiros é o ódio aos “ricos”; os
segundos também odeiam os “mercados financeiros”, mas rejeitam igualmente a
imigração, e muito especialmente a imigração muçulmana. Uns dizem que é o
Estado social que está em causa; outros, que é o Estado nacional. Coincidem,
porém, no inimigo: a “oligarquia europeia”, como diz Marine Le Pen. Para a
esquerda radical, é uma oligarquia neo-liberal, que quer submeter os Estados ao
mercado mundial, para gáudio das grandes fortunas; para a direita nacionalista,
é uma oligarquia globalizadora, que, segundo o escritor francês Renaud Camus,
está a tentar, através da imigração desenfreada, substituir a população nativa
da Europa por uma população importada do Terceiro Mundo.
Esquerda radical e direita
nacionalista não gostam de se misturar e não queremos aqui forçar as analogias,
mas o abraço à distância que Le Pen enviou a Tsipras faz sentido. Radicais e
nacionalistas falam igualmente de “democracia”, de “povo”, de “soberania” e de
“protecção”. Prometem um regime político onde o poder, conquistado através de
um grande movimento popular, seria usado para defender os nativos ou os pobres
contra os estrangeiros, sejam estes banqueiros ou imigrantes. Uns falam de
“desigualdade”, outros de “desnacionalização”: em ambos os casos, imaginam uma
unidade perfeita, existente no passado ou possível no futuro, de que nos
estaríamos a afastar através da diversidade de rendimentos ou da variedade de
origens étnicas. Por mais opostos que sejam, radicais e nacionalistas
correspondem bem, cada um à sua maneira, a um tempo de ansiedade dos europeus
com a globalização e a diferenciação.
O que pode significar a
vitória eleitoral do Syriza para estes populismos? Pode, claro, não significar
nada, a não ser novas eleições na Grécia daqui a uns meses. Mas pode significar
muito mais do que uma reconfiguração da área do Euro, por mais grave que essa
reconfiguração fosse, com o despejo da Grécia – ou a fuga da Alemanha. O modo
como a esquerda radical do Syriza ultrapassou a esquerda social-democrata do
Pasok (que caiu de 43,9% dos votos em 2009 para 4,7% ontem), tal como o triunfo
da Frente Nacional nas últimas eleições europeias em França, permite imaginar a
maior de todas as eventualidades políticas: uma mudança dos partidos que, nas
democracias europeias, fixaram desde a segunda guerra mundial as opiniões da
maioria dos cidadãos. À esquerda, os actuais partidos de matriz
social-democrata dariam lugar a partidos de matriz radical; à direita, os
partidos de matriz liberal-conservadora seriam trocados por partidos de matriz
nacionalista. Em França, há anos que a família Le Pen não sonha com outra
coisa.
Entre a “oligarquia europeia”,
ninguém, porém, quis antever catástrofes. Muitos oligarcas tentaram mesmo
suscitar boas expectativas em relação a Tsipras: ele não seria um Chávez
balcânico, determinado a tratar os contribuintes alemães como o seu poço de
petróleo, mas apenas outro político grego à cata de mais um perdão da dívida e
mais um empréstimo. Acontece que mesmo este cenário benigno, por mais inócuo
que seja em termos dos desígnios integracionistas da UE, implica de facto uma
viragem.
Até agora, o que tem limitado
a ambição de partidos como o Syriza ou a Frente Nacional, apesar dos seus
sucessos eleitorais, é a percepção de que não são partidos respeitáveis, e que,
como tal, mesmo saltando a barreira de repulsa dos eleitorados domésticos,
seriam devidamente boicotados pelos outros Estados europeus, como sucedeu ao
partido de Jorg Haider quando, no ano 2000, participou no governo da Áustria.
O facto de um partido deste
tipo sair de umas eleições no primeiro lugar da fila para formar governo já
seria, só por si, um sinal de que grandes convulsões são possíveis. Mas se a
isso acrescentarmos a sua aceitação pela UE como um parceiro normal, então
muito mais terá mudado: acabaram-se os leprosos na política europeia. Daí o
júbilo de Marine Le Pen com a vitória do Syriza: logo que um primeiro-ministro
Tsipras, muito sorridente, apertar as mãos dos seus colegas numa cimeira
europeia, estará demonstrado que uma presidente Le Pen não é o fim do mundo.
É difícil calcular os efeitos
de uma substituição de partidos deste tipo. Talvez consista apenas numa
renovação das oligarquias europeias, com radicais e nacionalistas encaixados no
arco da governação, dentro duma UE apenas um pouco mais protecionista e
inflacionista. Na Alemanha do princípio do século XX, também ninguém imaginava
que sociais-democratas e democratas-cristãos — com controversas propostas de
ruptura social e moral (socialização da economia, recristianização da sociedade)
–, se constituíssem um dia em pacíficos sócios de rotação numa democracia
liberal.
Mas a história é às vezes
falsamente reconfortante. Estarão a esquerda radical e a direita nacionalista disponíveis
para respeitar o pluralismo político e admitir a alternância governativa, que,
até hoje, foram os fundamentos das democracias europeias? Não serão as suas
políticas, fundamentalmente hostis à liberdade de iniciativa ou de circulação,
fatais para uma UE até agora concebida, apesar de todas as limitações, como uma
via de abertura das sociedades europeias e flexibilização das suas economias?
Nesse caso, a página que se virou ontem na Grécia pode mesmo ser a primeira de
um livro muito diferente do que aquele que contém a história dos últimos 70
anos.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
26-1-2015
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