Aparecido Raimundo de Souza
TENHO VISTO COISAS ESTRANHAS,
do arco da velha, por esse mundão de meu Deus. Algumas pitorescas que fogem ao
comum e, por essa razão, acho interessantes. Por norma, costumo anotar num
pedacinho de guardanapo até para não esquecer e rever depois, usando ou não
como ilustração para um de meus próximos textos. Outras vezes, atiro o que
anotei no primeiro cesto de lixo e fim de papo.
Dia desses, parei para almoçar num restaurante no centro da cidade. A
placa de papelão mal escrita, anunciava: “COMIDA CASEIRA A PREÇOS MÓDICOS”.
Antes de sentar numa das mesinhas justapostas no salão enorme e pedir a
refeição, resolvi tirar a água dos joelhos e lavar os dez dedos. Pois bem. O
que me chamou a atenção, logo que entrei no pequeno reservado, no fundo do
corredor que terminava numa escada em caracol, foi o local destinado aos
mictórios. Ali não havia conspicuidade e alinho. O WC era unissex, e servia, igualmente, para os funcionários tomarem
banho. Poucos lavabos de restaurantes oferecem chuveiro. Os locais destinados a
esse particular são exclusivos para empregados e o público não tem acesso.
Como opção, todavia, esse, por
algum motivo, fugia à regra. Não havia mijatório. Uma única bacia imunda e
fedida servia a todos, sem distinção.
Vou me concentrar descrevendo
as senhoras e aos senhores, não a latrina emporcalhada e ascorosa, mas o
chuveiro. O troço se constituía num cano fino e comprido, no fim do qual, uma regadera de plástico completava
vedando-lhe a boca. Até aí tudo bem, não fosse pelo fato da ducha estar virada
totalmente para o teto.
Imaginei de pronto, uma pessoa
tomando banho, com aquela geringonça incomum, posicionada em linha antagônica.
Teria que ser malabarista. E dos bons. Certamente, ao abrir a torneira, já o
fazer somente quando estivesse totalmente em pelo, e ensaboado, dos pés à raiz
dos cabelos, levando em conta que a água esborraria para cima. Intencionasse,
pois, se livrar do sabão, necessitaria subir no vaso sanitário, trepar com
cuidado, como se pisasse em ovos, para não escorregar e se estatelar no chão.
Antes, grudar, na alça do vitrô que ficava ao lado. Mas, se assim agisse, se se
agarrasse no minúsculo basculante (com um dos vidros quebrados, e no furo do
vitral, uma calcinha suja enfiada), o jorro da água estaria encharcando o teto.
Ora, bolas. Para ficar na postura da ducha, seria igualmente impossível e
improvável, além de penoso e martirizante, a não ser que a criatura tivesse
parentesco, ainda que distante, com a mulher gato ou com o homem aranha, se
fixando, como eles, na parte de cima do forro, de cabeça para baixo.
Fui um pouco mais longe na
minha louca viagem: imaginei uma das atendentes (duas gatinhas lindas, diga-se
de passagem), no final do expediente, entrando, apressada, para o asseio das
partes, apreensiva, com o horário do ônibus para chegar em casa mais cedo,
encarar o marido, tirar umazinha rápida, de galo no cio, antes da novela das
oito e depois, aos peidos, cair, de vez, nos braços de Morfeu. Que ofício ou
que encargo difícil! Necessitaria, num primeiro momento, se utilizar do vaso
como cadeira, correndo, o risco da boca porcelanada se quebrar e, num piscar de
olhos, a pessoa se ver, incontinente, num conjunto de situações
constrangedoras. Por segundo, esticar uma das mãos (tendo a outra apoiada na
parede) malabarizando, certeira, voltando o chuveiro com os furinhos à posição
normal. Efetivamente, um chute nos colhões. O teto alto demais. Sem contar com
tudo no antagônico dos avessos. Até com o uso de uma escada dessas pequenas,
não daria pé. Resumindo, não havia forma de segurar na pinguelinha da miúda
veneziana. Para completar, o fato de que o corpo, com o peso, escorregaria
fazendo forte pressão para baixo, a carcaça não se sustentaria (por mais que
encorajado, esse alguém possuísse compleição forte e robusta), e, por último,
levando em conta que o usuário fosse não encorpado, todavia, magro e seco como
bacalhau de porta de venda, seria deveras trabalhoso um asseio normal sem
complicações por menor que elas se apresentassem.
Em paralelo, outro problema
saltava corroído e suado. Os fios que
ligavam a eletricidade. Os dois polos vagavam desencapados e expostos. Por
azar, qualquer um que passasse por todas as etapas conseguisse se equilibrar
feito malabarista em corda bamba, poderia, no minuto seguinte, levar um choque
tremendo e cair de supino, na bacia da privada, de fuça na merda, ou no pior dos
mundos, morrer eletrocutado. Sem mencionar o fato de que o mísero ambiente
ficaria completamente inundado. Ainda por essa ótica, dos males o menos “mau”.
A porta não possuía chave, nem qualquer tipo de tranca ou tramela.
Chegasse um gaiato inesperado,
desavisado, na hora em que o infeliz (ou uma das moças estivesse se aprontando
para se dependurar), sem mais nem menos, metesse a curiosidade e empurrasse a
porta -, o que acha que aconteceria? Se fosse mulher, flagrada de cabeça para
baixo, nua da sola ao altaneiro, como explicaria um vexame de tamanhas
proporções? Ao contrário, mesmo modo, um
homem, a coisa igualmente se consubstanciaria penosa e ridícula. Em resumo: até
o sujeito entender a história de estar com as partes expostas, de cabeça para
baixo, certamente seria vítima de uma aguerrida confusão.
Achei por bem parar com essa
mania de divagar e voltar à realidade. Melhor coisa, sem dúvida, forrar o
estômago. A fome andava braba e
sinalizava algo urgente para comer.
Acabei meu xixi, lavei as mãos e regressei ao salão, onde fui
prontamente atendido por uma das graciosas
barwoman que se acercou de mim, rebolativa, com um sorriso de canto a canto
da boca, num rosto tímido que me comoveu. Devido ao calor, sua pele brilhava e
a alma, aprisionada pela tensão da correria, parecia elétrica. Se alguém a
abraçasse, provocaria faíscas e as luzes do seu eu interior certamente se
acenderiam.
Juro que gostaria de ser o
imprudente travesso e flagrar aquela linda
ragazzina, ali na minha frente, à espera do meu pedido (pelada -,
peladinha, sem nada -, como saiu do ventre da mãe, às voltas com o impossível,
modulando uma chuvinha particular) arisca como uma macaquinha peralta fazendo
um milhão de traquinagens naquele quartinho invulgar debaixo daquele pedaço de cano
com o crivo do coador de água direcionado na proa do telhado.
Título e Texto: Aparecido Raimundo
de Souza, jornalista. De Paraty, Rio de Janeiro, 6-6-2017
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