Alberto Gonçalves
Dada a doença da mulher de Pedro Passos
Coelho, o estadista sisudo de um país convencional evitaria alusões
desagradáveis. O dr. Costa, rosto da felicidade que nos caiu em cima, não o
fez.
“A alegria”, proclamou o dr.
Costa com a densidade filosófica de um manjerico ou dois, “é ter muitos amigos
e poder brincar”. De imediato, uma repórter interrogou-o: “O país tem
suficientes alegrias ou a subida do ‘rating’ para breve seria uma boa alegria?”
Apesar da sofisticada interpelação, o dr. Costa respondeu à altura: “A alegria
nunca é suficiente, devemos querer sempre mais alegria”. Esmagada pela potência
do axioma, a repórter contorna um bocadinho o assunto: “E o ministro Centeno no
Eurogrupo a tempo inteiro?” O dr. Costa reage impávido: “É um homem alegre,
também… Olhe, mas agora terequemofumb (?) o nariz vermelho, agora
teroquemfbamanhar (?) o nariz vermelho”. Intrépida, a repórter chega ao tema
que se impunha: “Então Passos Coelho dizia ontem que o governo se estava a
aproveitar do anterior governo…” Era a deixa para o dr. Costa sentenciar a
conversa com o improviso que ensaiara durante horas: “É uma pessoa menos
alegre”.
Por onde começar? Talvez pelo
princípio. O episódio acima decorreu numa escola primária de Lisboa, onde o
primeiro-ministro celebrou o Dia Mundial da Criança e arriscou rábulas com
palhaços. Até aqui, não há nada de demasiado estranho à rotina das democracias
contemporâneas. A partir daqui, entra-se numa dimensão exclusiva de certas
democracias especiais – e especialmente alegres. Vamos aproveitar o embalo e
brincar ao “descubra as diferenças”?
A primeira diferença passa
pela hospitalidade dedicada ao dr. Costa. Noutro lugar ou tempo, os professores
exibiriam na melhor das hipóteses um ar de enterro, e na pior um protesto que
podia incluir uma interpretação sentida do “Grândola, Vila Morena”. No caso, o
único ponto comum foi a presença de palhaços. De resto, só aplausos, “afetos”
e, claro, alegria.
A segunda diferença é o
à-vontade revelado pelo dr. Costa ao contracenar com os ditos palhaços. Se
tentasse a proeza, o chefe de uma nação triste faria uma figura ridícula.
Embora o ridículo não tivesse faltado, o dr. Costa, que ri sem parança e estava
no seu habitat, nem deu por ele. A alegria acima de tudo.
A terceira diferença é a velha
familiaridade do dr. Costa com a língua portuguesa: quase nenhuma. Até os
“tweets” do sr. Trump ficam aquém em matéria de liberdade expressiva. E ainda
bem. É óptimo sinal quando a gramática não atrapalha a satisfação de um
político com as suas conquistas e, principalmente, consigo mesmo. A alegria
comanda a vida.
A quarta diferença é o
comentário sobre Pedro Passos Coelho. Dada a doença da mulher deste, o
estadista sisudo de um país convencional evitaria alusões desagradáveis. O dr.
Costa, rosto da felicidade que nos caiu em cima, não evitou – ou por distração,
o que atesta o seu discernimento, ou de propósito, o que demonstra o seu
repugn…, perdão, impecável carácter. A alegria não quer saber de maleitas.
A quinta diferença é o papel
da referida repórter, que não conheço, mas que, pela devoção demonstrada, o dr.
Costa deve conhecer na perfeição. Todas as “questões” da senhora partilham da exata
euforia que, com indisfarçado zelo, os “media” avençados nos atiram à cara. Num
regime melancólico e escrutinado, pelo menos uma alminha perguntaria ao dr.
Costa se a razão das agências não se sobrepõe às patranhas dele, se o novo
recorde da dívida pública – alcançado naquele dia – não o aflige, se a
“promoção” do dr. Centeno não é sarcasmo como o do sr. Schäuble e se Pedro
Passos Coelho, ao defender os critérios de crescimento que a esquerda despreza,
não desmontara a propaganda vigente. A alegria é avessa ao ceticismo.
A sexta diferença é a
naturalidade com que meio mundo reage a semelhante paródia. Povos taciturnos
lamentam o desconchavo dos próprios líderes. Um povo radiante lamenta o
desconchavo dos líderes alheios, enquanto agradece a sorte que lhe providenciou
o dr. Costa. A alegria não implica ingratidão.
A sétima diferença é que
governantes sérios e a sério inspiram resmas de reflexões em volta da solidão
do poder. Um governante alegre não sofre desse mal: do alegre “jornalismo” à
alegre banca, dos alegres sindicatos a todos os alegres isentos da austeridade
que não ousa dizer o seu nome, o dr. Costa tem realmente muitos amigos.
Desgraçadamente, prefere brincar conosco.
Nota de rodapé:
Nasci num apartamento e, por
isto ou por aquilo, nunca morei num apartamento. Pela vida fora, este pormenor
impediu-me de testemunhar o mais fascinante veículo de socialização depois dos
jogos do Canelas. Falo, evidentemente, das reuniões de condomínio. O que sei
vem de relatos de amigos, que me contam encantadoras histórias sobre aquele
condómino específico, o qual, munido de má-fé, desconfiança, inveja e a
convicção de que a ele ninguém o come por parvo, transforma duas horas
ocasionais de aborrecimento em duas horas ocasionais de divertido conflito.
Pelos vistos, o espécime em questão existe em quase todos os edifícios e, até agora,
limitava-se a fazer rir os vizinhos. A partir de agora, graças a uma proposta
do PS, o espécime poderá proibi-los de arrendar a própria casa a turistas. Além
de atribuir a palermas a importância que estes não merecem, o PS mostra a
importância que atribui à liberdade, à propriedade e ao crescimento econômico
que finge festejar. Na perspectiva do socialismo, a ideia é brilhante.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
3-6-2017
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