quarta-feira, 7 de agosto de 2019

[Aparecido rasga o verbo] “Muquifo”

Aparecido Raimundo de Souza

ESTOU MORANDO NUM PORQUEIRO. Melhor dito, numa dessas espeluncas fuleiras bens simples, enterrada num prédio antigo incrustrado num buraco em meio de um bairro onde o progresso parece ter se esquecido de marcar presença. Minha lura, até o dia em que passei a ocupá-la, me fez pensar não sei por que cargas d’água, numa mocinha inúbil. Digo isso depois que descobri que em suas repartições nunca nenhum homem morou de fato antes de mim.

Só mulheres. Um entra e sai de fazer dó. Nesse pé, com a minha chegada, passei a ser o primevo a estender cuecas no varal comunitário e a andar pelado rondando tão perto de sua pureza quase virginal. Digo quase virginal em vista dos cômodos da biboca não serem nada confortáveis. Sem falar nas paredes rachadas, os telhados de amianto, tomadas antigas para ligações de aparelhos em lugares errados, portas com jaibros, sem trinco, e, para piorar, repletadas de cupins e lagartixas.

A pocilga fica no segundo andar, final do corredor. Para acesso, necessário galgar dois lances feios de escadas com subidas quase verticais. Arriba-se ao destino com a língua de fora, mesmo que o sujeito não tenha esse órgão musculomembranoso dentro da boca. Pelos caminhos quem chega ou sai, cruza com vários tugúrios, cada um com um par de tanques distintos na porta. Um serve para roupas e o outro para as louças que forem sendo usadas no dia a dia.

Até a minha lana-caprina pode ser visto um amontoado de madeiras velhas, moveis jogados, uma dezena de sacos de lixos. Sem falar nos ratos e baratas. Abundam como manjaléus em sonhos de crianças medrosas de dormirem sozinhas. Meu reservado, repetindo, é o derradeiro no final do corredor. Da janela desse cômodo onde me acho agora escrevendo (acredito bem poderia ser a cozinha, não fosse à ausência de uma pia), vislumbro uma pedreira ao longe.

Um baita morro alto e sisudo. Esse elevado se estende por um espaço enorme. Sua idade parece remontar do período cretáceo, quando os iguanodontes sequer pensavam em se transformarem num bizarro amontoado de fósseis inúteis. Olhando daqui, penso num homem de compleição adiposa de rosto esquisito, os braços estendidos descansando largados contíguos às pernas. Na minha ótica (ainda que hipoteticamente), a criatura se apresenta deitada, de barriga para cima.

Seu abdome igualmente enorme se projeta não mais do que até onde as minhas vistas alcançam. Em dias de halo, esse espinhaço prestigiado pelos luminosos do sol, se mostra vestido de verde e até fica bonito de ser contemplado. À noite, porém, a coisa se torna densamente escura, como uma mancha tocando o negror do céu sem estrelas. Agora, por exemplo, o seu cume está quase todo coberto por uma fumaça aziaga, como se prenunciasse chuva armando um temporal.

Abaixo, no trilho do peitoril, por entre as grades, capturo, como num quadro pintado às pressas, um amontoado de casinhas simples. A maioria sem reboque, os tijolos, as caixas d’água, as antenas das televisões e as repetidoras de celulares expostas às intempéries do inexorável. Recorda, ainda que em distanciado, o vale de Geena. Nesse instante uma corrente de ar sibila pela fresta que deixei aberta, para renovar o ar dentro das dependências da pequena  e humilde barga.

Ouço crianças brincando lá embaixo. Chega até meus ouvidos, igualmente, uma música de forró tocando alta em algum comércio próximo. Acho que num bar de moças vadias e escravas do sexo fácil em busca de programas para garantirem a sobrevivência. No mais, precingida numa desalacridade enferma, a noite segue seu caminho caindo lentamente. Daqui também me é dado pousar os sentidos nas pessoas grudadas na novela, outras comendo, outras tantas conversando.

A rua onde fica a construção, está deserta. Nenhuma viva-alma se aventura, apesar de não terem, os ponteiros, chegados às vinte e duas horas. Só o botequim das barangas, como um jardim cheio de rosas trepadeiras, parece sorrir com as desgraças de seus frequentadores. De resto, a farta bancada com todas as guloseimas para serem servidas a essas confrarias, onde a maioria que aqui vegeta tenta sobreviver empurrando para as lombrigas de plantão (dentro das suas respectivas barrigas), a pobreza que não desgruda e nem por um momento acena com um minuto de trégua.

Aqui ao lado de onde estou, numa pracinha abandonada à pombos e pássaros, seguem os mesmos moradores de rua, o mesmo pastor berrando na igrejinha improvisada em busca dos trocadinhos de meia dúzia de fiéis. Idêntico fluxo, os mesmos cachorros latindo, as mesmas motos e carros passando buzinando com a igual estridência desnecessária na única avenida que corta a localidade. Apesar desse quadro desanimadoramente desolador e paranoico, dos movimentos dos pingados dos pedestres, parece imperar uma solidão tenebrosa em torno de tudo.

Por seu turno, o vento segue tauteando a duros golpes um solfejo que não parece em nada com as composições de Mozart.  O assente, agora, lá ao longe, se fez maior, se agigantou ainda mais na sua abrangência medonha. Olhando assim, a mim me parece, além de harto e arrogante, soberbo e audaz. Sobretudo, imprevisível. Por conta disso, quem sabe, num repente inesperado se levante de seu cochilo e engula a cidadela com todas as luzes acesas esparramadas a seus calçados.  
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, do Rio de Janeiro. 6-8-2019

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