Aparecido Raimundo de Souza
ESTOU MORANDO NUM PORQUEIRO. Melhor dito, numa dessas espeluncas fuleiras
bens simples, enterrada num prédio antigo incrustrado num buraco em meio de um
bairro onde o progresso parece ter se esquecido de marcar presença. Minha lura,
até o dia em que passei a ocupá-la, me fez pensar não sei por que cargas
d’água, numa mocinha inúbil. Digo isso depois que descobri que em suas
repartições nunca nenhum homem morou de fato antes de mim.
Só mulheres. Um entra e sai de fazer dó. Nesse pé, com a minha chegada,
passei a ser o primevo a estender cuecas no varal comunitário e a andar pelado
rondando tão perto de sua pureza quase virginal. Digo quase virginal em vista
dos cômodos da biboca não serem nada confortáveis. Sem falar nas paredes
rachadas, os telhados de amianto, tomadas antigas para ligações de aparelhos em
lugares errados, portas com jaibros, sem trinco, e, para piorar, repletadas de
cupins e lagartixas.
A pocilga fica no segundo andar, final do corredor. Para acesso,
necessário galgar dois lances feios de escadas com subidas quase verticais.
Arriba-se ao destino com a língua de fora, mesmo que o sujeito não tenha esse
órgão musculomembranoso dentro da boca. Pelos caminhos quem chega ou sai, cruza
com vários tugúrios, cada um com um par de tanques distintos na porta. Um serve
para roupas e o outro para as louças que forem sendo usadas no dia a dia.
Até a minha lana-caprina pode ser visto um amontoado de madeiras velhas,
moveis jogados, uma dezena de sacos de lixos. Sem falar nos ratos e baratas.
Abundam como manjaléus em sonhos de crianças medrosas de dormirem sozinhas. Meu
reservado, repetindo, é o derradeiro no final do corredor. Da janela desse
cômodo onde me acho agora escrevendo (acredito bem poderia ser a cozinha, não
fosse à ausência de uma pia), vislumbro uma pedreira ao longe.
Um baita morro alto e sisudo. Esse elevado se estende por um espaço
enorme. Sua idade parece remontar do período cretáceo, quando os iguanodontes
sequer pensavam em se transformarem num bizarro amontoado de fósseis inúteis.
Olhando daqui, penso num homem de compleição adiposa de rosto esquisito, os
braços estendidos descansando largados contíguos às pernas. Na minha ótica
(ainda que hipoteticamente), a criatura se apresenta deitada, de barriga para
cima.
Seu abdome igualmente enorme se projeta não mais do que até onde as
minhas vistas alcançam. Em dias de halo, esse espinhaço prestigiado pelos
luminosos do sol, se mostra vestido de verde e até fica bonito de ser
contemplado. À noite, porém, a coisa se torna densamente escura, como uma mancha
tocando o negror do céu sem estrelas. Agora, por exemplo, o seu cume está quase
todo coberto por uma fumaça aziaga, como se prenunciasse chuva armando um
temporal.
Abaixo, no trilho do peitoril, por entre as grades, capturo, como num
quadro pintado às pressas, um amontoado de casinhas simples. A maioria sem
reboque, os tijolos, as caixas d’água, as antenas das televisões e as
repetidoras de celulares expostas às intempéries do inexorável. Recorda, ainda
que em distanciado, o vale de Geena. Nesse instante uma corrente de ar sibila
pela fresta que deixei aberta, para renovar o ar dentro das dependências da
pequena e humilde barga.
Ouço crianças brincando lá embaixo. Chega até meus ouvidos, igualmente,
uma música de forró tocando alta em algum comércio próximo. Acho que num bar de
moças vadias e escravas do sexo fácil em busca de programas para garantirem a
sobrevivência. No mais, precingida numa desalacridade enferma, a noite segue
seu caminho caindo lentamente. Daqui também me é dado pousar os sentidos nas
pessoas grudadas na novela, outras comendo, outras tantas conversando.
A rua onde fica a construção, está deserta. Nenhuma viva-alma se
aventura, apesar de não terem, os ponteiros, chegados às vinte e duas horas. Só
o botequim das barangas, como um jardim cheio de rosas trepadeiras, parece
sorrir com as desgraças de seus frequentadores. De resto, a farta bancada com
todas as guloseimas para serem servidas a essas confrarias, onde a maioria que
aqui vegeta tenta sobreviver empurrando para as lombrigas de plantão (dentro
das suas respectivas barrigas), a pobreza que não desgruda e nem por um momento
acena com um minuto de trégua.
Aqui ao lado de onde estou, numa pracinha abandonada à pombos e pássaros,
seguem os mesmos moradores de rua, o mesmo pastor berrando na igrejinha
improvisada em busca dos trocadinhos de meia dúzia de fiéis. Idêntico fluxo, os
mesmos cachorros latindo, as mesmas motos e carros passando buzinando com a
igual estridência desnecessária na única avenida que corta a localidade. Apesar
desse quadro desanimadoramente desolador e paranoico, dos movimentos dos
pingados dos pedestres, parece imperar uma solidão tenebrosa em torno de tudo.
Por seu turno, o vento segue tauteando a duros golpes um solfejo que não
parece em nada com as composições de Mozart.
O assente, agora, lá ao longe, se fez maior, se agigantou ainda mais na
sua abrangência medonha. Olhando assim, a mim me parece, além de harto e
arrogante, soberbo e audaz. Sobretudo, imprevisível. Por conta disso, quem
sabe, num repente inesperado se levante de seu cochilo e engula a cidadela com
todas as luzes acesas esparramadas a seus calçados.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, do Rio
de Janeiro. 6-8-2019
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