domingo, 28 de junho de 2020

Covid-19, resumo de um desastre voluntário

Pode-se acusar as “autoridades” de falta de competência, não de falta de coerência: desde o princípio que mantiveram um nível invejável de contradições, negações, recuos e genérica desorientação.

Alberto Gonçalves

 A coisa aconteceu no ano da graça de 2020. Logo no início, notícias em rodapé mencionaram um novo vírus nascido na China, similar a outros que iriam dizimar a humanidade e foram descartados em dois meses. A partir de fevereiro, as notícias atingiram dimensão suficiente para inspirar os nossos governantes a comentá-las. Uma ministra, a da Agricultura, disse que o vírus favoreceria as exportações portuguesas para o Oriente. Um ministro, o da Economia, disse que o vírus não afetaria as contas locais, com a eventual excepção de um sector irrelevante como o turismo. Uma ministra, a da Saúde, disse o que lhe vinha à cabeça. A senhora da DGS apresentou-se gloriosamente à nação e, estabelecendo um padrão cômico que não sofreria abalos, garantiu que o vírus não chegaria cá.

Graça Freitas, diretora da Direção Geral de Saúde, e Marta Temido, ministra da Saúde
Nos idos de março, o vírus chegou e, conforme costuma afirmar a propósito disto e daquilo, o prof. Marcelo afirmou que “tudo estava a ser feito” para lidar com o bicho. Em seguida, fechou-se em casa a engomar roupa e a desperdiçar testes de diagnóstico. O dr. Costa exibiu a capacidade de liderança de uma Bimby e, receoso dos efeitos do pânico coletivo nas sondagens, acabou por fechar o que jurara não fechar e por manter aberto o que devia ter sido fechado. Enquanto a senhora da DGS recomendava visitas a lares de idosos e o BE explicava que o vírus era um aviso dos deuses para acabar com o capitalismo, desceu-se ao “confinamento”, a princípio com as fronteiras abertas para apanharmos ar. À cautela, decidiu-se espatifar a economia.

Durante semanas, o país fechou. Os portugueses, assustados face à gripe e mansos face ao poder, recolheram aos respectivos lares e os espaços públicos ficaram desertos a ponto de se ouvirem moscas e, a partir das janelas, os berros dos inúmeros “bufos” que esta história revelou, a interpelarem com insultos o ocasional transeunte. Nos espaços privados, ouviam-se as televisões, que viram na “pandemia” uma panaceia à sua inevitável redundância e apostaram no fomento da histeria. Alguns “pivôs” acharam natural partilhar desabafos líricos com as audiências. Todos os canais alinharam na propaganda do Governo e na alucinação de que estávamos, cito, em guerra – uma guerra onde as trincheiras fossem trocadas pelo sofá da sala e a artilharia inimiga pelas séries da Netflix. Para não haver dúvidas, transmitiram-se imagens, fora do tempo ou do contexto, de valas comuns em Nova Iorque, caixões empilhados em Itália e motins na Inglaterra. Era o chamado esforço patriótico, que motivou panegíricos também na imprensa ao desempenho das “autoridades”: os jornais competiram pela capa mais babada com a senhora da DGS, que gostava de orquídeas, aconselhava o abastecimento em “hortas de amigos” e, à época, proibia o uso de máscara.

As crises são uma oportunidade? Para o PS, com certeza. Ao reparar nas portas que a Covid abriu, e na docilidade dos cidadãos e das oposições, os socialistas aproveitaram para reforçar a teia de interesses à luz do dia, para exibir prepotência e arbitrariedade sobre a ralé, e para lucrar eleitoralmente, sob o extraordinário pressuposto de que o dr. Costa, que desfilava patranhas e desnorte, chefiava com brilho e sem alternativa o combate a um inimigo comum. É preciso algum talento para erguer uma mediocridade partidária ao estatuto de homem providencial. Mas não se deve desvalorizar a ajuda de um “jornalismo” que definitivamente abdicou de o ser, de um presidente desesperado por manter a popularidade e, insisto, de uma população historicamente apreciadora de trela curta. Sob incessantes estados de emergência, calamidade, alerta e apocalipse, o caldo de embustes foi um êxito que ninguém contestou – incluindo os que morreram por maleitas inofensivas e que o melhor SNS do mundo largou para se concentrar na Covid.

Na preparação da “nova normalidade”, afinal a instauração de uma “democracia” sem escrutínio nem escolha, não se dispensou a “novilíngua”, com os “distanciamentos sociais” e “etiquetas respiratórias” a simular uma aura “técnica” por cima de uma ofensiva política. Enquanto se cozinhava por exemplo o assalto ao Banco de Portugal e a conquista de 95% dos “media” por subvenção, as televisões enchiam-se de “especialistas” em contágios e nevoeiro, que mostravam curvas estatísticas e asseguravam, mês após mês, que “as próximas duas semanas serão decisivas”. Nos intervalos, condenavam-se as carnificinas na América, no Brasil e no Reino Unido, e não as carnificinas assaz superiores na Espanha, na Bélgica e na Itália. E nunca o pandemónio português, oficialmente designado por “milagre”.

A 13 de Maio, o “milagre português” não pôde celebrar-se em Fátima. Porém, no dia 1, o PCP pôde arregimentar os serviçais dos “sindicatos” no centro de Lisboa. Há religiões privilegiadas. Somado à pândega do 25 de Abril, o Dia do Trabalhador deu o pretexto para o Governo admitir, sem admitir, que exagerara nas restrições e, entusiasmado com a subserviência, arriscava afundar o país numa miséria ao estilo venezuelano. Os portugueses, ou a parte deles que não decidiu enclausurar-se até 2032, começaram a ter indicações, e às vezes ordens, para “desconfinar”.

De repente, o vírus que antes nos mataria a todos tornou-se “uma realidade com que deveríamos aprender a conviver”, gênero um cunhado aborrecido. Em simultâneo, as “autoridades” passaram a reconhecer que a Covid era suficientemente inócua para nos esfregarmos por aí e suficientemente perigosa para o fazermos com máscara “social”, pechisbeque cuja súbita imposição decorreu menos de descobertas científicas do que de negócios cometidos por “personalidades” do PS. Pode-se acusar as “autoridades” de falta de competência e de decência, não de falta de coerência: desde o princípio que mantiveram um nível invejável de contradições, negações, recuos, discriminações, mentiras, delírios e genérica desorientação.

Ao longo de junho, as pessoas regressaram à vidinha, salvo as que perderam o emprego e as que se enfiaram indefinidamente debaixo da cama. O número de infectados, que à semelhança do resto da Europa vinha a descer, desatou a subir, na capital e nos municípios vizinhos. Os culpados? Obviamente, a quantidade de testes e duas ou três festas “ilegais”. Obviamente, o Primeiro de Maio, uma curiosa manifestação “antirracismo” ou o espetáculo, com presença do PR e do PM, de um comediante afeto ao regime não permitiriam tal patifaria. Quando, num dos momentos mais alucinados do último meio século, o PR, o PM e três ou quatro apêndices anunciaram a realização de uns jogos da bola (“um prêmio aos profissionais de saúde”), já era nítida a essência do “milagre português”. A acompanhar a ruína econômica, surgiu o embaraço epidemiológico: em matéria de vírus, os portugueses transformaram-se nos proverbiais sarnosos, proibidos de entrar em diversos países civilizados e humilhados pela imprensa estrangeira, que o Governo se esqueceu de subornar. A sucessão de contratempos enervou o gentil dr. Costa que, à míngua de um velhote para surrar, insultou a ministra da Saúde, desconsiderou o prof. Marcelo e lançou mais regras aleatórias para arrasar os negócios que sobreviveram à DGS e à órbita do PS.

E estamos nisto, desprovidos de dinheiro e responsabilidade, de vergonha e turistas, de prestígio e respeito. Dizia alguém que a comédia é tragédia mais tempo. Tempo não temos. Tragédia temos em excesso. 2020 é um ano sem graça nenhuma.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador, 27-6-2020, 0h02  

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