quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O desmame


Com esta crise e com este Orçamento, as regras mudam claramente. Resta saber se o Governo e o País se conseguem manter em jogo

Pedro Camacho
Não existe deputado, governante, dirigente político, economista, gestor ou qualquer outro profissional da área económica que não soubesse, há já inúmeros anos, que este dia negro chegaria. Talvez não o imaginassem tão trágico como este Orçamento do Estado para 2012 o torna, mas não ignoravam, seguramente, que o dia do acerto de contas teria de chegar.
Sabiam-no os de esquerda e sabiam-no também os de direita. Nas áreas da Saúde, da Segurança Social, do Ensino ou das Obras Públicas, toda a gente sabia que em matéria de parcerias público-privadas, do setor empresarial do Estado ou da dimensão e do custo das administrações públicas, vivíamos numa trajetória insustentável, aplicando aquela máxima de que, em política e, sobretudo, em democracia, há coisas contra as quais não vale a pena lutar, porque apenas se ganha um rótulo de "comuna", de "fascista" ou de "louco". E, pior, no fim, perde-se as eleições. É por isso muito mais cómodo alinhar com as maiorias do momento e com as forças de sempre, estejam elas ligadas ao influente patronato financeiro ou aos poderosos lóbis político-sindicais. E foi assim, com plena consciência do que vinha acontecendo nos últimos anos, que chegámos ao momento de bater na parede, ficar sem alternativa e apanhar com este Orçamento do Estado.
Mais corte, menos corte, mais injustiça, menos injustiça, mais IVA aqui ou acolá, há já muito tempo que se sabia que tínhamos ultrapassado a barreira da crise para mergulhar no buraco da catástrofe. Andámos a viver anos a fio acima das nossas possibilidades. E fizemo-lo durante tanto tempo, e por força de tantas variáveis, que é injusto tentar descobrir os autores deste "crime" - salvaguardando, claro está, situações em que a Justiça assim o exija e a palavra crime deva ser lida literalmente.

Este é o mais penalizador Orçamento da democracia. Para a função pública, desde logo, porque os funcionários são severamente atingidos - no corte de subsídios, no congelamento de salários, na extinção de serviços, na redução das prestações pagas aos excedentários... Mas é um Orçamento que penaliza também fortemente os trabalhadores do setor privado. Não é só por causa das inúmeras medidas de natureza fiscal, que se vão traduzir, direta e indiretamente, em cortes muito significativos do seu rendimento disponível, um fardo que, aliás, partilham de forma igual com os colegas do setor público. É, sobretudo, porque as empresas privadas acabam sempre por aplicar receitas mais duras aos seus trabalhadores do que a bitola estabelecida pelo Estado para os funcionários públicos. Vão-se multiplicar as renegociações individuais, ou de empresa, das cláusulas de trabalho, vão surgir as reduções voluntárias de salários, vão regressar as vagas de despedimentos... Tudo isto irá, seguramente, acontecer aos trabalhadores do setor privado, dentro da lei ou à margem dela, somando novos sacrifícios a esforços de contenção que duram há já vários anos - anos em que o setor público manteve uma trajetória festiva e imprudente de aumento de custos.
Este é um Orçamento de excessos. Excessos nos cortes a serviços públicos essenciais. Na supressão de apoios às famílias e nos aumentos da carga fiscal. Que exige excessos nas privatizações e na velocidade de reestruturação do Estado. Que fará crescer o já elevado nível de trabalho precário, que lançará muito mais gente no desemprego e que determinará o fecho de muitas empresas. É tudo isto. Mas havia outra solução?
É verdade que "amanhã" pode-nos cair no colo um perdão parcial das nossas dívidas. Que a União Europeia talvez desencante um qualquer fundo milagroso que desbloqueie o impasse em que vive a nossa banca, e, por arrastamento, o nosso tecido empresarial. Ou que a troika conclua que o calendário de metas estabelecido para o défice português é um suicídio. Seriam dádivas dos céus. Mas a questão não é essa. Enquanto tal não acontecer, existe outra solução? 
E falta também, neste orçamento, a resposta à pergunta de "um milhão de dólares". Como é que vamos crescer? Como se compensam as medidas recessivas? Deixando de lado a resposta básica das exportações (existe alguém no mundo que não as aponte?), há muita gente a fazer aquela primeira pergunta... mas não se ouvem sugestões credíveis de soluções com efeito imediato...
Este é um Orçamento de recessão, de pobreza, de desespero. É um orçamento "feito à medida do credor, e está tudo dito", expressão certeira que ouvi a um conhecido economista. Mas... havia alternativa? E, no fim, vai valer a pena? Renegociar prazos, metas ou montantes é uma iniciativa que tem de partir de fora, sob pena de pagarmos um preço bem mais alto do que a fatura que hoje temos pela frente, afunilando ainda mais as nossas estreitas opções de financiamento. Já quanto à segunda questão, só mesmo o futuro o dirá. Nesta resposta, há uma dose de inevitabilidade que se assume, mas também uma base de conforto que é óbvia e que só não vê quem não quer: investimento público já nós fizemos, e aos milhões, e falidos também já estamos.
Este deverá ser o primeiro de muitos orçamentos "contidos", de reestruturação das administrações públicas, de mudança do padrão de crescimento económico e de recusa de clientelismo de Estado - e era bom que algumas destas coisas se mantivessem, seja com este seja com qualquer outro Governo. Mas também é, seguramente, um orçamento de muito curto prazo.
Por necessidade ou por opção política, eventualmente pelas duas razões, o Estado vai desaparecer rapidamente da economia, dando origem a um "desmame" violento. Não serão, por isso, precisos mais de seis meses para percebermos - e mostrarmos aos outros - se somos capazes, ou não, de viver nesse mundo diferente para onde nos leva este Governo do PSD/CDS. Além disso, dada a violência do remédio que é aplicado, será também curto o tempo de estado de graça que os cidadãos estarão disponíveis para dar ao Governo.
Título e Texto: Pedro Camacho, revista Visão, nº 972, 20 a 26-10-2011
Edição: JP

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