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Busto de Sócrates, de Victor
Wager, na Universidade Ocidental da Austrália, Crawley.
Foto: Greg O’Beirne,
dezembro de 2004
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Rivadávia Rosa
Um amigo de SÓCRATES,
Querofonte, havia perguntado ao oráculo se algum homem era mais sábio do que SÓCRATES
e a Pítia respondera que ninguém era mais sábio do que ele.
A resposta foi intrigante
para SÓCRATES, que sabia não ter nenhuma sabedoria. No entanto, o deus não
poderia mentir, pois isso era contra a sua natureza. Por isso, SÓCRATES começou
a testar a resposta engajando em conversas homens renomados por sua sabedoria,
a fim de encontrar algum mais sábio do que ele. Depois ele iria procurar o
deus, com a refutação nas mãos. A primeira vítima da investigação socrática da
sabedoria foi um conhecido político. Ele não se revelou muito sábio, embora
fosse considerado sábio por muitos e ainda mais por si mesmo, e SÓCRATES
tentou convencê-lo de que estava errado quando se julgava sábio. É
compreensível que tenha despertado a fúria do político e de vários outros entre
os presentes. Ainda assim, ele descobriu na ocasião que de fato era mais sábio
do que a sua vítima, pois, embora nenhum deles soubesse “alguma coisa realmente
era bela e boa”, ele pelo menos tinha consciência de sua ignorância e, assim,
ganhava uma ligeira vantagem sobre o homem supostamente sábio. Exames adicionais
de natureza similar tiveram o mesmo resultado e aumentaram o número de seus
inimigos.
A questão é entre o orgulho
da sabedoria humana que leva à desordem na vida do indivíduo, assim como da
sociedade, e a existência em obediência ao deus. Pois, “na verdade, apenas deus
é sábio, e pela sua resposta ele pretendeu mostrar que a sabedoria humana vale
pouco ou nada”. SÓCRATES realiza a sua tarefa em obediência ao deus. Ele
tenta sacudir os atenienses individualmente, e os mais presunçosos entre eles
em primeiro lugar, para conduzi-los de volta á ordem verdadeira. Ele é o dom do
deus para Atenas, oferecido como um moscardo para a polis a fim de
instigá-la de volta à vida. Lembrando uma frase de HERÁCLITO, ele
adverte seus juízes a não se mostrarem irritados, como um homem de repente
acordado do sono; devem poupá-lo, pois não encontrarão facilmente um sucessor
para que ele possa estimulá-los e persuadi-los e reprová-los. O homem que se
encontra diante deles acusado de asebeia (ἀσέβεια - ἀ + σέβας,
sebas = algo sagrado, traduzido por impiedade) é o
verdadeiro servo da ordem divina, enviado pelo deus délfico para salvar
os ímpios acusadores.
Nos discursos da defesa,
três ações ocorrem ao mesmo tempo: o julgamento de SÓCRATES, que termina
com sua condenação; o julgamento de Atenas, que termina com a rejeição
do salvador; e a separação entre SÓCRATES e a polis, que
termina com a solidão de sua morte.
O primeiro discurso é a
defesa propriamente dita. SÓCRATES prova que a acusação de asebeia
é infundada, pois não pode ser ímpio quem tenta reformar a polis por
ordem do deus Delfos. Além disso, ele se refere a seu Daimonion (δαιμόνιον
– poder divino, divindade um espírito; um ser inferior a Deus, superior aos
homens) bem conhecido de todos, aquela voz divina que se fazia ouvir cada vez
que desejava impedi-lo de realizar alguma ação. Ele assegura aos juízes que o Daimonion
nunca o havia aconselhado a desistir de sua investigação referente à sabedoria
dos outros homens. Alguém poderia argumentar que a maneira adequada para salvar
a comunidade teria sido ocupar um cargo público e usar o seu poder para o
bem da polis. Essa forma, no entanto, ele teve de rejeitar como fútil,
porque os detentores de cargos públicos eram tão corruptos que não permitiriam
que ninguém se abstivesse de participar de seus crimes. Ele teria encontrado
a morte há muito tempo se tivesse ocupado um cargo de importância e tentado ser
honesto. E, uma vez mais, teve a sua atitude confirmado pelo Daimonion,
pois este levanta sua voz admoestadora distintamente toda vez que ele cogitava
essa possibilidade.
A podridão da polis,
descrita por TUCÍDIDES, havia se tornado o obstáculo decisivo a uma reforma
dentro das formas constitucionais; tornara-se necessário recorrer
diretamente ao cidadão individual; e o pathos da Oração Fúnebre
de PÉRICLES tornara-se a vontade reformadora do cidadão devotado. Poder
e espírito havia se separado tanto na polis que uma reunião pelos meios
comuns da ação política tornara-se impossível. SÓCRATES fala como o representante
do poder divino da Hélade; e enfatiza a ironia de que ele, o único ateniense
que acredita nos deuses a ponto de seguir suas ordens e arriscar a própria
vida, é acusado de impiedade pelos mesmos homens cuja descrença nas coisas
divinas é a razão da decadência.
A atmosfera deve ter sido
tensa. Mais de uma vez SÓCRATES teve de advertir o grande tribunal
para que evitasse demonstrações ruidosas que pudesse perturbar a sua defesa.
Pode-se imaginar como um considerável número dos Quinhentos deveria estar
inflamado pela conduta de SÓCRATES e sua garantia de que levaria adiante
sua tarefa ordenada pelo deus, mesmo que eles o deixassem escapar sem punição.
Ainda assim, havia outros que deviam ter sentido a hora fatal, pois o tribunal
dividiu-se quase pela metade: 281 dos 500 o consideraram culpado.
O primeiro discurso havia
sido tecnicamente a defesa, na devida forma legal, contra a acusação.
Depois do veredicto, o julgamento de Atenas encobriu o julgamento de SÓCRATES.
A manifestação do deus délfico em SÓCRATES havia sido revelada, assim
como sua missão para a polis. Agora, o povo havia julgado SÓCRATES
e os deuses tinham condenado o povo.
Com o segundo discurso,
começa a separação entre SÓCRATES e a polis. De acordo com a lei
dos procedimentos, o queixoso devia propor uma pena e o réu, quando julgado
culpado, teria de fazer a contraproposta. O acusador havia pedido a pena de
morte. No plano do drama espiritual, porém, o salvador havia sido rejeitado e o
homem SÓCRATES estava agora livre. Assim, o segundo discurso é um
ato da alma livre no momento de suspense entre a decisão da fortuna e a sua
realização. Ele considera o seu serviço para a cidade. Qual seria a recompensa
adequada para o homem que é o benfeitor da polis e precisa de todo o seu
tempo para desempenhar a sua missão de boa vontade? Pareceria mais apropriado
que ele fosse compensado com a honraria mais elevada concedida a um cidadão
ateniense, um lugar na mesa pública no Pritaneu. Essa honra seria muito
mais adequada para ele do que para os vitoriosos em Olímpia. A sua linguagem é
quase literalmente a de XENÓFANES um século antes. De qualquer modo, a
situação mudou do primeiro discernimento da ordem da sabedoria e de uma
admoestação por parte do filósofo-místico para o chamado inexorável ao dever pelo
salvador que, diante da morte, age como o instrumento de Deus. A
exigência, no entanto, não é rude. O encanto de SÓCRATES, como sempre,
está em sua superioridade à situação. Sua alma é tranquila e em suas reflexões
ele é o observador irônico enquanto forças divinas e humanas escolheram a sua
pessoa terrena como o campo para seu embate. A sua solicitação de um lugar no Pritaneu
é seria, pois ele o deveria receber como o homem da mais elevada posição na
ordem espiritual da polis; e não é seria, pois ele sabe que não irá
recebê-la na ordem real de Atenas. Ela serve como um ponto de partida irônico
para uma reflexão sobre as alternativas práticas. SÓCRATES recusa-se a
fazer uma contraproposta séria, pois isso seria uma admissão de culpa. O medo
da morte não o induziria a fazer isso, pois a morte não é um mal, enquanto que
o outro curso seria um mal. E o que ele deveria sugerir? Prisão? Mas o que ele
faria na prisão? Ou exílio? Isso só daria continuidade aos seus problemas, pois
como se poderia esperar que estrangeiros o tolerassem se nem mesmo os seus
concidadãos suportaram a sua ação? Desse modo, em obediência à lei, que exige
que se faça uma proposta, SÓCRATES propõe uma multa insignificante.
Depois dessa proposta, o tribunal o sentencia à morte.
O terceiro discurso é
dirigido aos juízes, aqueles que o condenaram e aqueles que o absolveram.
Primeiro, ele lembra aos juízes que votaram pela sua morte a triste fama que
agora é deles, de serem os homens que mataram SÓCRATES. E ele os alerta
de que não escaparão ao destino que tentaram evitar condenando-o à morte, pois
outros surgirão e exigirão deles a conta de suas vidas que eles lhe recusaram.
Depois, ele se dirige aos juízes que o consideraram inocente e lhe revela a
ordem secreta que governou os acontecimentos do dia: em nenhum ponto todo o
procedimento o seu Daimonion o havia alertado; portanto, o rumo adotado
por ele foi aprovado pelos deuses.
A Apologia conclui
com o grande tema que percorrerá toda a obra de PLATÃO: “E agora é a
hora de irmos, eu morrer, e vós viver”. A vida do filósofo em direção à morte e
ao julgamento na eternidade separa-se da vida das almas mortas. E, assim, o pathos
do momento é aliviado pela última ironia da ignorância socrática: “Quem de nós
toma o melhor caminho é algo que está escondido, exceto de Deus”. Voegelin, Eric. Platão e
Aristóteles (vol. III – Ordem e História – Order and History, v. III
– The collected works of Eric Voegelin, v. 16). Introdução Dante Germino.
Tradução Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola, 2009, pp. 67-70)
Rivadávia Rosa, 31-12-2011
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