domingo, 1 de janeiro de 2012

A Apologia (Julgamento de Sócrates) – notas


Busto de Sócrates, de Victor Wager, na Universidade Ocidental da Austrália, Crawley. 
Foto: Greg O’Beirne, dezembro de 2004

Rivadávia Rosa
Um amigo de SÓCRATES, Querofonte, havia perguntado ao oráculo se algum homem era mais sábio do que SÓCRATES e a Pítia respondera que ninguém era mais sábio do que ele.
A resposta foi intrigante para SÓCRATES, que sabia não ter nenhuma sabedoria. No entanto, o deus não poderia mentir, pois isso era contra a sua natureza. Por isso, SÓCRATES começou a testar a resposta engajando em conversas homens renomados por sua sabedoria, a fim de encontrar algum mais sábio do que ele. Depois ele iria procurar o deus, com a refutação nas mãos. A primeira vítima da investigação socrática da sabedoria foi um conhecido político. Ele não se revelou muito sábio, embora fosse considerado sábio por muitos e ainda mais por si mesmo, e SÓCRATES tentou convencê-lo de que estava errado quando se julgava sábio. É compreensível que tenha despertado a fúria do político e de vários outros entre os presentes. Ainda assim, ele descobriu na ocasião que de fato era mais sábio do que a sua vítima, pois, embora nenhum deles soubesse “alguma coisa realmente era bela e boa”, ele pelo menos tinha consciência de sua ignorância e, assim, ganhava uma ligeira vantagem sobre o homem supostamente sábio. Exames adicionais de natureza similar tiveram o mesmo resultado e aumentaram o número de seus inimigos.
A questão é entre o orgulho da sabedoria humana que leva à desordem na vida do indivíduo, assim como da sociedade, e a existência em obediência ao deus. Pois, “na verdade, apenas deus é sábio, e pela sua resposta ele pretendeu mostrar que a sabedoria humana vale pouco ou nada”. SÓCRATES realiza a sua tarefa em obediência ao deus. Ele tenta sacudir os atenienses individualmente, e os mais presunçosos entre eles em primeiro lugar, para conduzi-los de volta á ordem verdadeira. Ele é o dom do deus para Atenas, oferecido como um moscardo para a polis a fim de instigá-la de volta à vida. Lembrando uma frase de HERÁCLITO, ele adverte seus juízes a não se mostrarem irritados, como um homem de repente acordado do sono; devem poupá-lo, pois não encontrarão facilmente um sucessor para que ele possa estimulá-los e persuadi-los e reprová-los. O homem que se encontra diante deles acusado de asebeia (ἀσέβεια - + σέβας, sebas = algo sagrado, traduzido por impiedade) é o verdadeiro servo da ordem divina, enviado pelo deus délfico para salvar os ímpios acusadores.

Nos discursos da defesa, três ações ocorrem ao mesmo tempo: o julgamento de SÓCRATES, que termina com sua condenação; o julgamento de Atenas, que termina com a rejeição do salvador; e a separação entre SÓCRATES e a polis, que termina com a solidão de sua morte.
O primeiro discurso é a defesa propriamente dita. SÓCRATES prova que a acusação de asebeia é infundada, pois não pode ser ímpio quem tenta reformar a polis por ordem do deus Delfos. Além disso, ele se refere a seu Daimonion (δαιμόνιον – poder divino, divindade um espírito; um ser inferior a Deus, superior aos homens) bem conhecido de todos, aquela voz divina que se fazia ouvir cada vez que desejava impedi-lo de realizar alguma ação. Ele assegura aos juízes que o Daimonion nunca o havia aconselhado a desistir de sua investigação referente à sabedoria dos outros homens. Alguém poderia argumentar que a maneira adequada para salvar a comunidade teria sido ocupar um cargo público e usar o seu poder para o bem da polis. Essa forma, no entanto, ele teve de rejeitar como fútil, porque os detentores de cargos públicos eram tão corruptos que não permitiriam que ninguém se abstivesse de participar de seus crimes. Ele teria encontrado a morte há muito tempo se tivesse ocupado um cargo de importância e tentado ser honesto. E, uma vez mais, teve a sua atitude confirmado pelo Daimonion, pois este levanta sua voz admoestadora distintamente toda vez que ele cogitava essa possibilidade.
A podridão da polis, descrita por TUCÍDIDES, havia se tornado o obstáculo decisivo a uma reforma dentro das formas constitucionais; tornara-se necessário recorrer diretamente ao cidadão individual; e o pathos da Oração Fúnebre de PÉRICLES tornara-se a vontade reformadora do cidadão devotado. Poder e espírito havia se separado tanto na polis que uma reunião pelos meios comuns da ação política tornara-se impossível. SÓCRATES fala como o representante do poder divino da Hélade; e enfatiza a ironia de que ele, o único ateniense que acredita nos deuses a ponto de seguir suas ordens e arriscar a própria vida, é acusado de impiedade pelos mesmos homens cuja descrença nas coisas divinas é a razão da decadência.
A atmosfera deve ter sido tensa. Mais de uma vez SÓCRATES teve de advertir o grande tribunal para que evitasse demonstrações ruidosas que pudesse perturbar a sua defesa. Pode-se imaginar como um considerável número dos Quinhentos deveria estar inflamado pela conduta de SÓCRATES e sua garantia de que levaria adiante sua tarefa ordenada pelo deus, mesmo que eles o deixassem escapar sem punição. Ainda assim, havia outros que deviam ter sentido a hora fatal, pois o tribunal dividiu-se quase pela metade: 281 dos 500 o consideraram culpado.
O primeiro discurso havia sido tecnicamente a defesa, na devida forma legal, contra a acusação. Depois do veredicto, o julgamento de Atenas encobriu o julgamento de SÓCRATES. A manifestação do deus délfico em SÓCRATES havia sido revelada, assim como sua missão para a polis. Agora, o povo havia julgado SÓCRATES e os deuses tinham condenado o povo.
Com o segundo discurso, começa a separação entre SÓCRATES e a polis. De acordo com a lei dos procedimentos, o queixoso devia propor uma pena e o réu, quando julgado culpado, teria de fazer a contraproposta. O acusador havia pedido a pena de morte. No plano do drama espiritual, porém, o salvador havia sido rejeitado e o homem SÓCRATES estava agora livre. Assim, o segundo discurso é um ato da alma livre no momento de suspense entre a decisão da fortuna e a sua realização. Ele considera o seu serviço para a cidade. Qual seria a recompensa adequada para o homem que é o benfeitor da polis e precisa de todo o seu tempo para desempenhar a sua missão de boa vontade? Pareceria mais apropriado que ele fosse compensado com a honraria mais elevada concedida a um cidadão ateniense, um lugar na mesa pública no Pritaneu. Essa honra seria muito mais adequada para ele do que para os vitoriosos em Olímpia. A sua linguagem é quase literalmente a de XENÓFANES um século antes. De qualquer modo, a situação mudou do primeiro discernimento da ordem da sabedoria e de uma admoestação por parte do filósofo-místico para o chamado inexorável ao dever pelo salvador que, diante da morte, age como o instrumento de Deus. A exigência, no entanto, não é rude. O encanto de SÓCRATES, como sempre, está em sua superioridade à situação. Sua alma é tranquila e em suas reflexões ele é o observador irônico enquanto forças divinas e humanas escolheram a sua pessoa terrena como o campo para seu embate. A sua solicitação de um lugar no Pritaneu é seria, pois ele o deveria receber como o homem da mais elevada posição na ordem espiritual da polis; e não é seria, pois ele sabe que não irá recebê-la na ordem real de Atenas. Ela serve como um ponto de partida irônico para uma reflexão sobre as alternativas práticas. SÓCRATES recusa-se a fazer uma contraproposta séria, pois isso seria uma admissão de culpa. O medo da morte não o induziria a fazer isso, pois a morte não é um mal, enquanto que o outro curso seria um mal. E o que ele deveria sugerir? Prisão? Mas o que ele faria na prisão? Ou exílio? Isso só daria continuidade aos seus problemas, pois como se poderia esperar que estrangeiros o tolerassem se nem mesmo os seus concidadãos suportaram a sua ação? Desse modo, em obediência à lei, que exige que se faça uma proposta, SÓCRATES propõe uma multa insignificante. Depois dessa proposta, o tribunal o sentencia à morte.
O terceiro discurso é dirigido aos juízes, aqueles que o condenaram e aqueles que o absolveram. Primeiro, ele lembra aos juízes que votaram pela sua morte a triste fama que agora é deles, de serem os homens que mataram SÓCRATES. E ele os alerta de que não escaparão ao destino que tentaram evitar condenando-o à morte, pois outros surgirão e exigirão deles a conta de suas vidas que eles lhe recusaram. Depois, ele se dirige aos juízes que o consideraram inocente e lhe revela a ordem secreta que governou os acontecimentos do dia: em nenhum ponto todo o procedimento o seu Daimonion o havia alertado; portanto, o rumo adotado por ele foi aprovado pelos deuses.
A Apologia conclui com o grande tema que percorrerá toda a obra de PLATÃO: “E agora é a hora de irmos, eu morrer, e vós viver”. A vida do filósofo em direção à morte e ao julgamento na eternidade separa-se da vida das almas mortas. E, assim, o pathos do momento é aliviado pela última ironia da ignorância socrática: “Quem de nós toma o melhor caminho é algo que está escondido, exceto de Deus”. Voegelin, Eric. Platão e Aristóteles (vol. III – Ordem e História – Order and History, v. III – The collected works of Eric Voegelin, v. 16). Introdução Dante Germino. Tradução Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola, 2009, pp. 67-70)
Rivadávia Rosa, 31-12-2011

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