quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Até onde vai a responsabilidade dos jornalistas?


José Manuel Fernandes
As imagens são terríveis e a generalidade dos órgãos de informação não as publicou. Um jornalista a ser decapitado. Outro a ser ameaçado, com uma faca na garganta. Depois a decisão acertada do Twitter de bloquear o vídeo chocante da morte de Foley. Tudo a revelar a brutalidade da acção dos radicais islâmicos do ISIS, cujos métodos levaram à denúncia de que “está em curso um genocídio medieval contra a população civil no Iraque”. E por fim a ideia de que há problemas para os quais só verdadeiramente despertamos quando tocam alguém que sentimos mais próximo – como um jornalista.

James Foley, o jornalista decapitado, e Steven Sotloff, o jornalista que o jihadistas ameaçam decapitar, estavam na Síria a fazer o seu trabalho – um trabalho que, num cenário de guerra, é sempre difícil e perigoso. Outros profissionais morreram naquele conflito, apanhados pelo fogo cruzado ou no meio de um bombardeamento, alguns deles veteranos de outros conflitos. Por regra todos estavam ali como voluntários e sabiam que corriam riscos. O que não torna menos horríveis as suas mortes, sobretudo este assassinato.

Todos os que estão no terreno sabem porém que não correm apenas risco de vida – podem também pôr em jogo a sua credibilidade. Costuma dizer-se que, quando se ininia uma guerra, a primeira vítima é a verdade. E todos sabemos que a guerra da propaganda é muitas vezes mais importante do que a guerra com balas reais. Para os jornalistas o desafio é especialmente complexo porque não enfrentam apenas a dificuldade de conseguirem chegar às boas fontes de informação – confrontam-se ao mesmo tempo com tremendos desafios à sua regra de imparcialidade.

Christiane Amanpour, talvez a mais famosa repórter de guerra da CNN, disse um dia, a propósito da guerra da Bósnia: 'There was no way that a human being or a professional should be neutral.' Verdade? Na altura o seu editor corrigiu-a: 'Any good reporter caught up in a big story will occasionally go a step too far. That is why everybody has an editor.'

As dificuldades dos repórteres aumentam quando as guerras envolvem paixões não apenas nos territórios onde os exércitos se enfrentam, mas também nas opiniões públicas dos diferentes países. E poucas guerras envolvem tantas paixões como as de Israel e da Palestina. Paixões que muitas vezes também tocam os jornalistas, que até tomam partido em apaixonadas discussões. Isso mesmo está a acontecer em Israel depois de a associação da imprensa estrangeira ter feito um comunicado em que condena as pressões exercidas pelo Hamas junto dos jornalistas que seguiam o conflito a partir do interior de Faixa de Gaza: “The Foreign Press Association protests in the strongest terms the blatant, incessant, forceful and unorthodox methods employed by the Hamas authorities and their representatives against visiting international journalists in Gaza over the past month”.

A polémica estalou quando a chefe da delegação do New York Times, Jodi Rudoren, utilizou a sua conta no Twitter para considerar essa tomada de posição uma “tonteria” (“nonsense”). Mais tarde acrescentaria que era “perigosa”. A história vem contada no Haaretz: “Foreign press divided over Hamas harassment”.

Mas esta controvérsia não tem apenas por palco os círculos frequentados pela imprensa estrangeira em Israel: já transbordou para as páginas de muitos jornais em todo o mundo. O que se discute é o equilíbrio na cobertura do recente conflito, o facto de praticamente nenhum repórter destacado em Gaza ter relatado as operações militares do Hamas, sendo que muitos transmitiam as informações fornecidas pelas autoridades locais afectas a esse grupo radical sem as escrutinarem devidamente.

No britânico The Telegraph, Alan Johnson, um estudioso do Médio Oriente, recapitula alguns episódios que seriam sinais de falta de equilíbrio na cobertura jornalística do conflito. Eis um deles:
Israeli filmmaker Michael Grynszpan 
described on Facebook an exchange he had had with a Spanish journalist who had just left Gaza. "We talked about the situation there. He was very friendly. I asked him how come we never see on television channels reporting from Gaza any Hamas people, no gunmen, no rocket launcher, no policemen. We only see civilians on these reports, mostly women and children. He answered me frankly: 'It's very simple, we did see Hamas people there launching rockets, they were close to our hotel, but if ever we dare pointing our camera on them they would simply shoot at us and kill us.'"

Um dos pontos mais controversos da cobertura noticiosa foi o facto de poucos jornalistas referirem que o Hamas construiu um dos seus principais bunkers por baixo do mais importante hospital de Gaza e que os repórteres esperavam pelas suas conferências de imprensa no pátio desse mesmo hospital. Esse é um dos pontos focados na reportagem da New Republic, uma reportagem significativamente intitulada “Reporters Have Finally Found Hamas. What Took So Long?”. Eis uma das histórias que aí se conta:
“A Palestinian journalist wrote in France’s Liberation newspaper that he had been interrogated by Hamas and threatened with expulsion from the Strip. A colleague had even denied him shelter for the night, 
explaining, “You don’t mess with these people”— Hamas, that is —“during war.” Two days later, the story was pulled at the journalist’s request.”

Depois há o problema de como se reportam as vítimas, em especial as vítimas civis. Quantas são? Por que nunca foram dados números sobre as baixas militares do Hamas? E é mesmo verdade que morreram todos aqueles filhos a todas aquelas famílias? Lembro-me de, em 2002, pouco tempo depois da batalha de Jenin (um campo de refugiados na Cisjordânia) ter assistido em Bruges, num Congresso do Fórum Mundial de Directores, a uma discussão sobre uma família de nove palestinianos que a imprensa de todo o mundo tinha dado como morta e que, afinal, estava viva.

Agora sucedeu o mesmo, mas com uma família de Gaza. Muitos órgãos de informação contaram a história da família de Mohammed Badran, mas raros corrigiram a informação. Um dos que o fez foi a revista da esquerda britânica New Statesman, numa nota de correcção a uma longa reportagem intitulada “Life among the ruins: ten days inside the Gaza Strip”.

Um conflito com as características do israelo-palestiniano, onde quase todos tomam partido, tende a extremar as exigências de rigor e a levar ao aparecimento de organizações da sociedade civil que se dedicam ao escrutínio dos jornalistas. Essas organizações fazem-no, por regra, a partir de um ponto de vista. Assim, para conhecer uma perspectiva pró-palestiniana, pode-se consultar o FAIR – Fairness and Accuracy in Reporting, e ver este exemplo. Já sites como CAMERA - Committee for Accuracy in Middle East Reporting in America e Honest Reporting– Defending Israel from Media Bias colocam-se mais numa perspectiva pró-israelita. Mas todos contribuem para colocar pressão sobre o trabalho dos jornalistas e lembrar-lhes, como fazia o editor de Christiane Amanpour, que às vezes se deixam envolver demais e perdem equilíbrio na forma como relatam os factos.

Por hoje é tudo. Bom descanso, boas férias (se for o caso) e, claro, boas leituras.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador, 20-08-2014

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