Enquanto lisboeta regozijo-me
por José Sá Fernandes ter a seu cargo os jardins. Suponha-se que lhe tinham
dado rédea livre para as estátuas, cruzes, bibliotecas pejadinhas de livros
ultrapassados?
Helena Matos
O carácter messiânico da
esquerda que quer sempre ser mais esquerda, mais pura e que passa a vida a
garantir que agora é que vai ser produz a nível internacional fenómenos como
Hollande (são dignos de uma antologia da fé os títulos da imprensa portuguesa
após a eleição de Hollande) e, numa pequena escala, gera fenómenos como José Sá
Fernandes que assim que passam das palavras aos actos se assemelham àqueles
balões que mal saem das mãos do vendedor para as da criança começam a perder
gás. (Ainda não me recompus dos cinco euros que dei por um balão Hello Kitty na
precisa semana em que se descobriu que a dita afinal não é uma gata mas sim uma
menina e para meu azar o balão também descobriu que não quer ser balão e está
para ali mais vazio que os nossos bolsos depois de pagarmos os impostos com que
este governo mais liberal de sempre nos presenteia.)
Pois o nosso Zé, o tal que nos
garantiam fazia falta, é uma dessas figuras. Agora deu-lhe para embirrar com os buxos da Praça do Império: “estão ultrapassados” diz a assessoria de
imprensa do vereador que, talvez no entusiasmo de finalmente ter algo para
comunicar, importou para a jardinagem um conceito da propaganda totalitária: só
se conserva o que está de acordo com a ideologia dominante. O passado e o não
conforme apagam-se. Cortam-se. Deixam-se secar.
Felizmente para nós que o
vereador Sá Fernandes tem o pelouro dos jardins e assim só lhe sobram os buxos
da Praça do Império e, daqui lhe lanço o meu repto, terá também de intervir nas
hortas da capital, pois terá de admitir o senhor vereador que nisto de hortas
citadinas, mais a mais biológicas, Salazar foi precursor. O senhor vereador já
pensou que em cada lisboeta que planta verduras por essa capital fora se
esconde um manhoso português sempre a dizer que tem saudades do campo, que na
sua aldeia é que se está bem mas que depois não despega daqui nem por nada? Eu
se fosse ao senhor vereador instituía um exame de anti-salazarismo aos
candidatos a hortelões, para avaliar das suas intenções progressistas, porque
sem essa avaliação corre-se o risco de cada pé de couve que medra na capital se
transformar numa ode ao pretérito chefe de Governo, para todos os efeitos
patrono honorário das hortas nesta Lisboa que desde o rinoceronte que el-rei D.
Manuel I, o Venturoso de seu cognome, mandou ao Papa Leão X, já viu tanta coisa
que nada a espanta. Nem sequer o senhor vereador!
De qualquer modo enquanto
lisboeta regozijo-me por José Sá Fernandes ter a seu cargo os jardins.
Suponha-se que lhe tinham dado rédea livre para as estátuas, cruzes, azulejos,
bibliotecas pejadinhas de livros ultrapassados e demais símbolos doutros
tempos? Não havia picaretas nem fogueiras que chegassem! Imaginem o que seria
de nós se o vereador olhasse com olhos de ver para a fachada dos Jerónimos?
Para a Torre de Belém? Para a esfera armilar que está no pelourinho da Praça do
Município?… Lisboa tornar-se-ia num imenso Chão Salgado ou, numa versão mais
épica, numa Cartago após a passagem de Cipião: todo o vestígio do passado seria
apagado.
Assim com os buxos a coisa é
mais fácil e menos aparatosa. E sobretudo talvez finalmente o senhor vereador
consiga fazer alguma coisa. Porque por assim dizer o senhor vereador é uma
espécie de personificação do inconseguimento, palavra do afecto da presidente
do nosso parlamento e que colocou meio país a tremer quando, no 10 de Junho,
Cavaco Silva desmaiou e já todos nos víamos no sarilho do inconseguimento de
Assunção Esteves ter conseguido ser Presidente da República, facto que
transformaria num detalhe a rasoura que Sá Fernandes prepara aos buxos da Praça
do Império. Mas deixemos essa terrífica visão presidencial no domínio do
hipotético, que já temos agasturas que nos bastem, e voltemos ao nosso Zé que
fazia falta, agora senhor vereador.
Que me recorde, o Zé enquanto
vereador começou por querer criar uma marca de vinho e de azeite da capital.
Nesta versão empreendedora também cogitou comercializar as amêijoas e as
corvinas do Tejo. Estávamos então em Agosto de 2007. Para trás tinha ficado a
fase em que Sá Fernandes era tão só advogado e se dedicava de alma e coração às
providências cautelares que por pouco transformaram o Marquês de Pombal em
campo santo. Aliás por alguns meses o terreno da Rotunda foi mais sagrado que o
solo de Meca. Na santíssima graça do Senhor e também por abençoada intervenção
da fraternidade devota do marquês, o Zé tornou-se vereador e Lisboa pode voltar
a ser perfurada à vontade sem que a tribo do Zé e seus Zezinhos tivesse
frémitos de agonia de cada vez que um martelo pneumático toca o alcatrão da
capital. (Igualmente abençoado com a infinita graça de 18,1 milhões de euros
foi o consórcio responsável pela obra e que colocou a Câmara de Lisboa em
tribunal por causa das obras paradas no túnel do Marquês de Pombal. Mas note-se
que os lisboetas até ficaram agradecidos por só terem pago 18,1 milhões de
euros de indemnização, pois, como pressurosamente os jornalistas escreviam, a
Câmara até conseguira poupar 6,5 milhões no acordo que fez com o dito
consórcio, já que o tribunal fixara o valor da multa em 24,6 milhões de euros.
Não sei se o Zé vereador participou nestas reuniões em que se tratava das
multas provocadas por Zé impugnador ou se andava no Tejo em busca das corvinas.
Mas estou em crer que o consórcio deve ir a Fátima todos os anos rogar para que
Nossa Senhora, que tanto pode, dê muita saúde ao senhor vereador e sobretudo
para que este quando deixar as presentes funções se dedique de novo às saudosas
e benfazejas providências cautelares.)
É certo que o executivo
municipal não acompanhou o Zé nos negócios da agricultura e da pesca. Assim o nosso
Zé virou-se para o ar e em Fevereiro de 2008 anunciou a Parada do Vento. A
mesma começou por ter uma designação apropriadamente em inglês, Wind Parade
2008, e constava de 25 torres eólicas, com a altura de quatro andares, que
iriam ser instaladas junto da segunda circular, no Jardim Amália Rodrigues, no
Parque Recreativo dos Moinhos de Santana, no Alto da Serafina, no Parque da
Belavista, na Avenida da Índia, nos Olivais, na Piscina Municipal da Boavista,
na Avenida Calouste Gulbenkian, junto à Cordoaria Nacional e na Avenida Padre
Cruz. A Wind Parade surgia apadrinhada pelas European Wind Energy Association,
Sustainable Energy Europe e Associação Portuguesa de Energias Renováveis que
nestas coisas o nosso Zé arranja sempre muitos nomes para o apoiar. O vereador
Sá Fernandes sabia de fonte certa que cada turbina, por ano, pouparia até 2,15
toneladas de CO2 e daria um rendimento de 2184 euros. Em Março, as turbinas já
estavam reduzidas a quinze. Afinal Lisboa tem ventos que chegam e sobram, mas
estes não correm de modo a produzir energia. Pouco depois a Wind Parade ficou
transformada num evento simbólico em que se colocariam apenas algumas turbinas,
para que o cidadão a elas se habituasse. E por fim nem isso.
Após esta desfeita que lhe foi
pregada pelos ventos, o vereador voltou de novo à terra. E virou-se para os
jardins. O Príncipe Real – aí está uma designação toponímica ultrapassadíssima
pois já não existindo em Portugal príncipes menos se entende que se distingam
os príncipes uns dos outros! – foi uma das vítimas das intervenções do Zé que
de fazer falta no executivo estava nesta fase quase a tornar-se no Zé que o
executivo já não podia ver e sobretudo não queria que fosse visto. O subsolo
parecia ser um local apropriado a energia criativa do vereador. Em boa verdade
o pavimento de alcatrão do Jardim do Príncipe Real não tinha problema algum mas
Sá Fernandes entendeu que o mesmo devia ser substituído por um saibro
estabilizado, feito à base de pó de vidro reciclado. Garantia então o vereador
que só quem tivesse “memória curta” não veria as melhorias no piso. Se por
melhoria se entender um irrespirável terreiro de pó no Verão e um lamaçal no
Inverno pode falar-se em melhoria. Dado que ninguém confirmava a melhoria,
antes pelo contrário, a CML optou por pulverizar o pavimento com uma espécie de
cola que evitaria a libertação do pó de vidro no ar. Resultado: o piso do
Jardim do Príncipe Real, que nesta fase parecia um campo experimental da guerra
química, abateu e rachou.
E então Sá Fernandes
desgostoso com o Tejo que não lhe deu amêijoas nem corvinas, triste com a
Tapada da Ajuda que não produzia azeite nem vinho, traído pelos ventos que não
geraram energia, malquisto com o solo da capital que qual praga bíblica ora se
desfazia em pó ora se fendia, virou-se para os buxos da Praça do Império. Não
trata deles. E pronto! Desde que Gomes da Costa nos finais do século XIX
resolveu adequar à sua visão da História os quadros dos vice-reis da Índia e
demais notáveis da nossa História que ornamentavam o Palácio do Governo na
Índia portuguesa que não se via uma coisa assim. O militar, que havia de chegar
a Presidente da República, não satisfeito com as representações pouco
grandiosas desses nossos preclaros antepassados, avançou de pincel para os
quadros e, mais barba menos armadura, compôs-lhes as vetustas figuras com a
mesma resolução que depois o notabilizaria na guerra e nos golpes de Estado. O
resultado foi mais devastador para a memória do Império que o arranque dos
buxos dos brasões que o senhor vereador se propõe agora levar a cabo: ao certo
não se sabe quem é quem naquela sucessão de heróis que nos olha, severa e
atónita com o despautério, em 75 painéis, 42 dos quais recriados a gosto por
aquele que anos mais tarde se tornaria no marechal Gomes da Costa.
Ora não há-de o senhor
vereador ser menos que Gomes da Costa. Ele criou-nos um imbróglio histórico com
as barbas de Afonso de Albuquerque e chegou a Presidente da República. O senhor
vereador que por esse seu percurso também me parece talhado para mais altos
voos quer alterar os brasões. Por mim, como lisboeta que sou, estou por tudo:
se já paguei a obra anunciada num túnel, mais a multa pela providência cautelar
e ainda a nova obra no mesmo túnel, porque não hei-de agora pagar o desbaste
dos buxos mais as plantinhas que os irão substituir? Desde que não os substitua
por aqueles calhaus e três pés de bambu que agora ornamentam tudo que é jardim
e que a mim me destrambelham os nervos, tudo bem. E já agora, se findo este
mandato municipal pensa voltar ao activismo das providências cautelares avise
para o mail que segue abaixo porque nesse caso eu monto um consórcio e vou
dedicar-me às obras públicas com as quais espero que o senhor vereador então já
advogado volte a embirrar. Ou então montamos uma empresa de jardinagem.
Como o senhor vereador
calculará eu sou uma mulher conservadora, logo nutro uma forte embirração para
com as áreas mais rentáveis da jardinagem, a saber o cultivo de produtos
alternativos ao tabaco. (Valha a verdade também já estamos os dois um bocado
velhos para andarmos a brincar aos hippies, coisa que feita a consabida
excepção aos Rolling Stones só é esteticamente aceitável até aos vinte e poucos
anos.) Mas não digo que não à produção de buxos. Com formatos actualizados e
ultrapassados.
A sério, o futuro de José Sá
Fernandes preocupa-me. Porque, assim como assim, nós vamos ter sempre de aturar
e sustentar os Zés que os messiânicos de serviço colocam no andor. E
convenhamos que na galeria dos candidatos a tal lugar José Sá Fernandes até nem
é dos piores. Nem o que nos causará mais dano. Perigosos são aqueles que se
serviram dele e que agora o largam como coisa descartável que é e já andam por
aí noutras procissões com outros que garantem fazer falta no andor.
Título e Texto: Helena Matos, Observador,
31-08-2014
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