O que aqui evoco tem uma
assinatura comum: Portugal. Com
gente que nas marés baixas, faz muito mais do que não desistir.
O verão é como uma suite de
violoncelo. Único e incomparável. Como a suite número 1 de Bach que posso ouvir
um milhão de vezes seguidas como posso viver mil dias de Verão, cada um deles
com a mesma inteira expectativa. Outra vida. Ruy Belo era quem mais o sabia,
todos os anos esperava pelo verão “como por outra vida”. Eu também.
Outra vida onde cabem tantas
vidas e tão várias geografias como as que já levo nesta “única estação” –
também dizia o poeta – porque só ela consente estas demandas que destoam nas
outras estações mas que, na “única”, se tornam naturalmente apetecidas e
exaltantes. Verossímeis, até.
E por falar em violoncelo
solo, talvez este verão tenha afinal começado numa real sala do Real Palácio da
Ajuda. Era uma noite quente de Julho enfeitada por três das suites de
violoncelo, 1, 3 e 6, e dentro daquela sala de alto pé direito, havia um
violoncelista que se confundia com o seu violoncelo. Tinha o porte de uma
estátua grega e o gesto, pleno de graça, estava tão suspenso do sopro de Bach
que me fez lembrar a perfeição que só os deuses têm. Chama-se Pablo de Naverán [foto]
e conheci-o por um desses milagres de que sou assídua consumidora que são os
festivais de música clássica. E que eu desse por isso e talvez porque a
necessidade aguça a “desinstalação”, a crise não me privou de nenhum deles.
Foi no Festival Estoril Lisboa que ouvi Pablo de Naverán e foi esse homem de sorriso silencioso fluindo musicalmente por entre os frescos do Palácio da Ajuda, que me abriu a porta do verão e me fez circular entre os andamentos de Bach e os andamentos que pontuaram o meu mapa estival: o Atlântico bravio e salgado da Foz do Arelho, a transparência aveludada do oceano que borda a Madeira, as longas noites de estrelas de agosto, a fortuna do ócio, as mãos prodigiosamente jovens de Paul Badura Skoda tocando (de cor) Mozart e Brahms na Semana Internacional de Piano dentro das muralhas de Óbidos, as leituras preguiçosas, as conversas indefinidas, o vagar, o gin do fim da tarde no Rio do Prado, o calor da terra no verão.
E do outro lado do espelho – e
não, não é de todo contraditório é, isso sim, maravilhosamente complementar – a
azáfama, o alarido, a algaraviada dos netos (“Luis, tenho uma péssima notícia,
o Nani vai para o Sporting”, clamaram há dias os 4 anos do Vicente para o seu
veneradíssimo irmão mais velho). Mas… os que são estas moradas de mar e de
música, estes poisos familiares no campo ou no oceano, estes encontros alegres
com amigos do peito à mesa da Tribeca, estes tão precários, fugazes, momentos
de algo de parecido com a felicidade, se não as preciosas pertenças da única
estação? (Precários e fugazes, sim: nem o estado do mundo nem o que se avizinha
– e agiganta – diante das nossas vidas, nos consentem senão isso: uma breve
brecha na confusa inquietação dos dias.
2 - Gosto mais de
violoncelo do que de órgão, mas quando se trata de seis órgãos a dialogarem
entre si, facto único na Europa e creio que no mundo (foram construídos ao
mesmo tempo e concebidos para tocar em conjunto) é impossível não os recordar
neste texto. De cada vez que entro na Basílica de Mafra, reeditando o mesmo
espanto perante aquela tão singular conversa musical é como se um elevador
subitamente me catapultasse para uma antecâmara do céu.
Levanto a cabeça, acendo o
ouvido e deixo-me estar diante do órgão do Evangelho, o da Epistola, de S.
Pedro de Alcântara, da Conceição, do Sacramento e de Santa Bárbara, tocados por
jovens e dotados organistas na imponência barroca de Mafra. Onde um dia,
lembro-me bem, vi Placido Domingo ali mesmo comover-se e confessar publicamente
que gostaria de poder cantar ao som daquele som e…onde encontraria ele outro
igual?
A construção dos seis órgãos terminou em 1807 mas as invasões francesas e a partida do Rei para o Brasil esmoreceram quase logo a seguir a centelha criativa com que se haviam composto e tocado obras para tal conjunto. Apesar de algumas – parciais – intervenções ocorridas posteriormente, só no final do século passado, em 1998, veio a ocorrer o total restauro dos seis órgãos: um trabalho lento, meticuloso, dificílimo, paciente que talvez só Dinarte Machado, um dos melhores organeiros do mundo, seria capaz de levar a cabo com tão apurada perfeição. Mais: este feliz casamento entre a arte e o dinheiro de esclarecidos mecenas teve em Mário Pereira, conservador de Mafra, um oficiante à altura: percebendo a joia que tinha entre mãos e compreendendo ainda mais a responsabilidade que lhe competia em a partilhar, pôs os órgãos a tocar. A empresa não era fácil mas aos primeiros domingos de cada mês, com direcção artística de João Vaz, há concerto a seis órgãos em Mafra. Tão simples mas tão extraordinário quanto isto.
3 – Há felizmente
mais exemplos destes: gente “desinstalada” e que por isso opera, faz e cria sem
esperar por “melhores condições”. É também o caso de uma (tardia) descoberta
que fiz mas da qual quero hoje deixar notícia, pela sua altíssima qualidade e
pelo mérito que exibe. Fica no Caramulo, é um admirável museu e nasceu do
fulgurante golpe de asa de Abel Lacerda. Ele e seu irmão João tinham a quem
sair: o pai, Jerónimo Lacerda, médico reputado, transformara o quase
inacessível povoado do Caramulo numa vila altamente desenvolvida para a época
(anos vinte do século passado) com variadíssimos sanatórios privados e
públicos, onde se fazia escola no estudo e terapia da tuberculose, atraindo
àquelas serras os melhores médicos nacionais e estrangeiros.
Os filhos herdaram-lhe a veia
visionária: Abel, homem muito à frente do seu tempo e de finíssimo gosto, tinha
paixão pela arte; João pragmático, e determinado, era um fazedor. Um ousava, o
outro, concretizava. Passaram-se os anos, décadas e a vila declinava: os
sanatórios tinham começado a fechar com a descoberta dos medicamentos para a
tuberculose, o Caramulo parecia deixar de “fazer sentido”, era preciso partir
para outra. Para o museu que Abel sempre sonhara ali fazer. Assim começou uma
interessantíssima colecção de arte e certamente a de matriz mais original visto
que toda ela provém de doações e ofertas. Um caso único no país e não haverá
porventura melhor “retrato” do prestígio e da credibilidade desta família: de
Salazar a Picasso achava-se natural oferecer ou doar arte a um pequeno museu
anichado entre as serras de Portugal.
A coleção foi criada em tempo
recorde (1953/57), tal como o próprio museu, erguido à volta de um claustro que
um dia Abel Lacerda descobrira em ruínas perto de Viseu e logo adquirira, como
moldura para as suas obras. Mas a espécie de pressa com que tudo ele fazia,
aquele misterioso, quase palpável sentido de “urgência” em correr não era senão
afinal o outro nome do destino: com trinta e poucos anos, Abel Lacerda morreu
num brutal desastre de automóvel sem ver pronta a sua obra.
O museu foi inaugurado em
1959, o irmão João continuou a velar pelo magnífico espólio que tão bem define
o carácter invulgar do seu criador: pintura, escultura, mobiliário, cerâmica,
faiança, têxteis, numa viagem pela história da arte que começa no Antigo Egipto
com a deusa Isis com Hórus ao colo e desagua na arte portuguesa de hoje. Da
garrafa mandada fazer por Jorge Alvares, um dos primeiros navegadores
portugueses a chegar ao Japão, datada de 1552 até à “Mulher-garrafa” de
Picasso, das telas de Chagal, Dali, Miró, Amadeu, Viana, Vieira, passando pelas
deslumbrantes quatro tapeçarias de Tournai que estavam dispersas pelo mundo e
que Abel Lacerda – sabendo-as o mais impressivo testemunho da chegada das
caravelas à Índia – conseguiu juntar e adquirir, o que está no Museu do
Caramulo é o formidável património da memória. Mas… que é um colecionar senão
um guardador de memórias?
Memória acondicionada com
proporção e harmonia (o Museu do Caramulo recebeu este ano o Prémio Vilalva) e
servida com animo e “anima” por uma minúscula equipa, um Serviço Educativo, um
Grupo de Amigos, activo e fiel. Que seria porém de tudo isto sem o sentido de
responsabilidade dos netos de João Lacerda perante tão especial herança –
material e simbólica? Madalena, Tiago e Salvador Gouveia e João Lacerda são o
(desinstalado) testemunho de como ela se mantém, tanto tempo depois, viva,
operativa, apesar do mar das dificuldades: com a supressão de alguns apoios
estatais (crise oblige), o museu vive exclusivamente das receitas criadas pela
loja, bilheteira, mecenato do BPI e algumas empresas parceiras que se
associaram ao projecto.
Mas vive e essa é a boa
história.
Aqui chegados, dirão: e os
automóveis? Essa outra inacreditável colecção de reputação internacional, única
no mundo ao que me dizem e também lá está, no museu: os Bugattis, os Rolls, os
Cadillac – e os Peugeots e os Mercedes antigos – de faróis reluzentes e
carrocerie brilhante, objectos de culto com biografia própria… Que histórias
nos contariam essas máquinas amadas por João Lacerda que as coleccionava com
tanta chama? Uma boa história, sim.
E finalmente, há ainda isto
que quero dizer: três dos netos de João Lacerda – Tiago, Madalena e Salvador
Gouveia – eram filhos de António Patricio Gouveia. António era um principe a
quem os deuses amavam. Morreu com trinta e dois anos e também dramaticamente,
ao lado de Francisco Sá Carneiro de quem era chefe de gabinete, numa viagem que
não chegou ao destino.
4 – Escolhi estes
“desinstalados”, há felizmente muitos mais. Ainda agora conversei aqui no Observador com Maria Ribeiro da Fonseca que sem nunca ter escrito uma
linha, sem “apoios” e contando apenas com ela, escreveu um livro – que não
havia – para os 6/12 anos sobre… Portugal. Inteligente e didático e em duas
línguas, português e inglês.
Mas o que aqui evoquei, os
concertos da Ajuda, o piano de Óbidos, os órgãos de Mafra, o livro da Maria
Ribeiro da Fonseca, o Museu do Caramulo, tem uma assinatura comum: Portugal. Com gente que nas marés
baixas, faz muito mais do que não desistir.
Sempre gostei disso.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 26-08-2014
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