José António Saraiva
A esquerda, sendo por natureza
utópica, tem necessidade de criar os seus heróis - e também de ter os seus
vilões. Os maus da fita.
Os sonhos são muito
bonitos a nível individual. Os sonhos colectivos, pelo contrário, acabam
normalmente em tragédias. Foi o nazismo, foi o comunismo, foi o fascismo, foi o
maoismo...
Agora, a principal bête noire
da esquerda portuguesa (e europeia) é o ministro das Finanças alemão, Wolfgang
Schäuble. Ele é o culpado de tudo o que de mau acontece na Europa. Ele tem
todos os defeitos: é azedo, zangado com o mundo, amargo, intratável, sinistro,
etc.
É certo que o atentado que o
amarrou para toda a vida a uma cadeira de rodas pode ter feito dele um homem
mais duro. Mas, em primeiro lugar, Schäuble não caiu do céu: ele representa
hoje boa parte (senão a maior parte) da opinião pública alemã. Em segundo
lugar, limitou-se a dizer uma coisa evidente: a Grécia não tem condições para
estar no euro. No fundo, toda a gente sabe isso. Mas ninguém pode dizê-lo…
Os que criticam o ministro
alemão já não se lembram provavelmente do que disseram de Angela Merkel até há
muito pouco tempo. Merkel era a anterior bête noire da esquerda mundial - e até
de pessoas moderadas do centro-direita. Ouvi Marcelo Rebelo de Sousa dizer com
todas as letras que Merkel era «estúpida» pois estava a dar cabo do euro -
quando a Alemanha era a principal beneficiária da moeda única.
Ora, é preciso algum pretensiosismo
para dizer que uma mulher que chegou a chanceler alemã, e que já foi reeleita
com uma vantagem folgada, é ‘estúpida’ e não sabe o que é melhor para o seu
país.
No auge da contestação a
Merkel, lembro-me de escrever que ela ainda haveria de ser reconhecida como a
grande defensora do euro. Porquê? Porque defender o euro não é defender a
‘balda’, admitir tudo, deixar os países fazerem o que quiserem. Esse é o
caminho mais directo para o fim do euro. Defender o euro é defender a
disciplina orçamental, é exigir o cumprimento das regras, é dizer que os países
têm de respeitar os seus compromissos, têm de cumprir os limites do défice, têm
de pagar as suas dívidas, etc.
Os que defendem a ‘balda’, sob
o bonito nome de ‘solidariedade’, não percebem que as suas ideias conduziriam a
um beco sem saída - porque, mesmo que os vários líderes políticos europeus
fossem permissivos em Bruxelas e aceitassem todas as infracções às regras do
euro, os cidadãos dos países contribuintes líquidos acabariam por dizer um
rotundo ‘não’ e poriam fim à festa.
Curiosamente, muitos dos que
há poucos meses atacavam Merkel defendem-na agora - pelo simples facto de que
ela aparece em rota de colisão com Schäuble. A esquerda anda aos ziguezagues
porque, no seu afã de endeusar este e diabolizar aquele, acaba muitas vezes por
ter de mudar de opinião.
O fenómeno não é novo, mas
tem-se repetido até hoje.
Ainda há três semanas, Alexis
Tsipras era um herói para a esquerda. Ele ia mudar sozinho as regras da
política europeia e instalar uma nova ordem em Bruxelas, fazendo vergar a
Alemanha e todos os outros 17. Agora chamam-lhe nomes e acusam-no de
traição.
François Hollande foi outro
dos heróis para a esquerda. Depositaram-se nele muitas esperanças. Em contraste
com Sarkozy, do qual se dizia estar feito com Merkel, Hollande era o homem que
ia obrigar a chanceler alemã a adoptar outra atitude. Mas Hollande foi a Berlim
e no regresso mostrou que quem adoptara outra atitude fora ele próprio.
Antes de Hollande - e para o
lugar dele - a esquerda francesa (e europeia) teve outro herói efémero:
Dominique Strauss-Khan. Mas este perdeu-se num insólito assédio a uma criada de
quarto e, embora os socialistas tenham tentado durante algum tempo segurá-lo,
concluíram que não era possível e deixaram-no cair.
Antes disso, outro herói, este
de estatura mundial, se prefigurou no horizonte da esquerda: Barack Obama. Era
o primeiro Presidente negro da história dos EUA, era democrata, ia apagar do
mapa os disparates de Bush. Mas depressa a esquerda se desiludiu, percebendo
que não se muda a política externa de um país como os EUA como quem muda de
camisa e por um exercício de vontade. E nem o facto de Obama ter introduzido
uma reforma histórica no sistema de saúde foi suficiente para evitar a
desilusão. A esquerda esperava muitíssimo mais dele.
Já não falo para trás.
Nos líderes africanos que a
esquerda endeusou, de Samora Machel a Kadhafi, autor do Livro Verde, que muitos
esquerdistas de várias latitudes promoveram a grande pensador. Como é possível?
Como é possível que muita gente pela Europa fora - um continente que teve
enormes pensadores - se tenha deixado encantar por um charlatão, um tirano com
um pensamento rudimentar?
Depois de tantas experiências
falhadas, como é que a esquerda continua a acreditar em Dons Sebastiões? Para
mim é um mistério. Depois de ter glorificado Lenine, Trotsky, Estaline,
Krutchev, etc., na URSS, depois de ter depositado tantas expectativas em Mao, a
Oriente, como se explica que ainda não tenha aprendido?
Mas não aprendeu. Hoje em dia
ainda há quem se curve perante uma figura absolutamente ridícula, anedótica, de
chorar a rir, como o líder norte-coreano Kim Jong-il.
A esquerda sempre foi assim e
continuará a ser - porque, no momento em que deixasse de ser, em que assentasse
os pés no chão e não fosse atrás de ilusões, deixaria de ser esquerda.
O que ainda alimenta a
esquerda são estes heróis de pacotilha que dizem umas coisas bombásticas.
‘Agora é que é’ - pensam os incautos. ‘Este é que vai mudar tudo’. A esquerda,
como qualquer adolescente, quer poder sonhar. Quer ouvir a voz daqueles que a
fazem sonhar. Quer acreditar em fantasias como a Primavera Árabe ou a revolução
grega.
A esquerda não quer ouvir a
realidade porque quer poder viver num mundo ilusório. Mas, como já escrevi, os
sonhos são muito bonitos a nível individual. Os sonhos colectivos, pelo
contrário, acabam normalmente em tragédias. Foi o nazismo, foi o comunismo, foi
o fascismo, foi o maoismo... Será que a esquerda nunca pensou nisto?
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