Paulo Tunhas
A visão do PCP é obviamente tudo menos
apropriada para elucidar os reais conflitos na nossa sociedade. É apenas um
exercício militante de cegueira para ocultar o que é importante.
“A luta continua!”, ouvia-se,
matraqueado, na televisão. Jerónimo de Sousa acabara de falar das virtudes
criativas do “centralismo democrático” (uma expressão que hoje em dia só deve
ser conhecida por um número muito restrito de portugueses) e da base teórica
que constitui para o PC o marxismo-leninismo. Era o fim do discurso da festa do
Avante!, e a multidão fervilhava de entusiasmo.
“A luta continua!”. A litania
acompanhou, mais próxima ou mais longínqua, a maior parte da minha vida, como a
de todos nós, e, de uma certa maneira, é a expressão emblemática do PCP. Afirmação
de um presente que é rememoração do passado e promessa que o futuro prolongará
inflexivelmente o que o passado legou ao presente. Símbolo poderoso de
identidade, portanto, da identidade comunista. Uma identidade viril (a “luta”)
e ininterrupta (“continua”), sem falhas ou suspeição de ambiguidades e
compromissos que, sequer remotamente, possam pôr em causa a superioridade
política e moral daquela particular comunidade. Uma imagem perfeita que
desenha, num só gesto, o que define aquele grupo singular e o que o separa, sem
concessões, da demasiado humana mutabilidade e oscilação dos outros.
Falar do PCP provoca-me sempre
algum pudor. Não que sofra em qualquer grau da tendência vulgar para o fascínio
pela identidade pretensamente absoluta e indivisa daquela comunidade que parece
seduzir tantos dos nossos contemporâneos. O conhecimento da sua pactuação e
entusiasmo com os mais desmesurados horrores totalitários, bem como a mais
local memória do seu papel no PREC, chegam e sobram para evitar ternuras aberrantes
e deslocadas. Claro que isso não impede o reconhecimento de várias coisas,
nomeadamente o complexo elemento humano que ditou sacrifícios e heroísmos na
resistência a Salazar, sacrifícios e heroísmos misturados, como se sabe, com
furiosas injustiças e cruéis facciosismos. Mas este segundo elemento é, de
direito e de facto, claramente separável do primeiro, e, politicamente, é o
primeiro que importa, e aí o juízo não oferece lugar para grandes dúvidas. Não,
o que leva a algum pudor quando se fala do PCP é o sentimento, e creio estar a
usar as palavras com propriedade, de se estar a invadir a privacidade alheia.
Aquilo apresenta tantas características de uma família fechada sobre si que é
um pouco como, entrando no nosso prédio, nos enganarmos no andar e, por
inadvertência, sermos obrigados a asssistir a uma intimidade com a qual nada
temos a ver e em relação à qual só por coscuvilhice algum interesse poderia
surgir.
Fora disto, e do significado
presente da notória influência do PCP no actual Governo, com consequências que
só podem ser péssimas, o que “A luta continua!” me lembrou foram outras coisas.
Elas têm a ver com a linguagem e a maneira de pensar. Genericamente, com o modo
como, para dizer aquela tal continuidade de que falei, a linguagem do PCP é
caracterizada por um uso maciço de oposições, sem lugar para posições
intermédias. Ora, para pensar o que quer que seja, tal como para a nossa
orientação mais simples (em frente/atrás, acima/abaixo, esquerda/direita,
etc.), é sem dúvida necessário opor. Mas pensar exige ir além disso, exige
procurar estabelecer relações entre o que se opõe que não sejam de puro
agonismo. Nada disso se encontra, tirando no plano estritamente táctico, no
PCP. Para além disso, se a linguagem das oposições tem a ambição de dar a ver o
carácter fluente da história, o seu dinamismo, o seu efeito prático é
exactamente o inverso: cristalizar as oposições num plano mítico, com a ajuda
de uma linguagem petrificada e, por definição, separada da realidade e com
pouquíssimos pontos de contacto efectivo com esta.
Alguns exemplos. Paz e guerra,
por exemplo. O PCP não cessa de se proclamar no campo da paz e em oposição ao
campo da guerra. Não são precisas grandes subtilezas teóricas para se perceber
que “paz” e “guerra” não têm aqui nenhum significado prático bem definível. São
puros símbolos abstractos que visam unicamente traçar uma linha de divisão
entre si e os outros, que se encontram naturalmente no campo da guerra. Ou
então avanço e retrocesso. Aparentemente, trata-se de uma referência ao
dinamismo das sociedades, um dinamismo que se encontraria sublinhado pela
abundantíssima utilização de palavras como “luta”, “batalha”, “ofensiva”,
“resistência”, etc. Mas o que sugere dinamismo reflecte o seu exacto contrário.
São expressões míticas ritualmente utilizadas para oferecerem uma visão da
realidade eminentemente estática, sem contacto com a fluência do real. E
exactamente o mesmo se passa com as entidades que se encontram na tal luta. De
um lado, o capitalismo, frequentemente associado ao fascismo, ao imperialismo e
aos “grandes grupos financeiros”; do outro, o socialismo, ou, mais
caseiramente, “Abril”, de que o PCP se considera legítimo e exclusivo
proprietário (“o Partido de Abril”) e a “política alternativa, patriótica e de
esquerda”. Tal visão das coisas é obviamente tudo menos apropriada para
elucidar, por pouco que seja, os reais conflitos que se encontram nas
sociedades, a nossa ou outras. Ela é antes um exercício militante de cegueira
destinado a, com o auxílio de palavras propositadamente abstractas, ocultar
tudo o que é verdadeiramente importante e apresenta problemas que têm de ser
resolvidos. Os verdadeiros problemas ficam enterrados pela aplicação de um
modelo mítico à realidade.
Não é, note-se, que não haja
uma realidade que o PCP afeccione particularmente. Há-a, certamente. Mas não é
uma realidade portuguesa. É a da defunta União Soviética, antes do seu colapso.
Basta ver as declarações sobre as danosas consequências do seu triste fim e,
particularmente, sobre a queda do muro de Berlim. Além, é claro, dos vários
doces enlevos com a Rússia de Putin, substituto possível, nos nossos tempos, do
antigo “Sol da Terra” (Cunhal) que entretanto deixou de brilhar.
Não me entreguei a estas
breves considerações com a supimpa pretensão de dizer algo de novo. Tudo isto
foi dito muito melhor e mais detalhadamente por um sem-número de pessoas. A
única razão para o exercício é que, sob a superior direcção do nosso querido
António Costa, o PC goza hoje, através dos seus sindicatos, de um indiscutível
poder sobre alguns ministérios. E não é preciso ser um génio para perceber que
a imposição de uma visão mítica da realidade, de um esquema das coisas
abstracto e a-temporal, de uma concepção estática da sociedade disfarçada por
uma fraseologia dinamista, só podem ter o pior dos efeitos sobre a nossa vida.
Estão a tê-lo e vão tê-lo ainda mais. A luta continua, com efeito.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
16-9-2016
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