André Azevedo Alves
O PS está a atirar para o caixote do lixo
o seu legado na construção do actual regime democrático, feita contra a mesma
extrema-esquerda revolucionária de que passou a depender para se manter no
poder
À medida que a realidade
diverge cada vez mais das previsões e promessas do PS e que o descarrilamento das contas públicas face aos objectivos traçados para
o défice e para a dívida se torna cada vez mais evidente, não surpreende que a
discussão sobre o agravamento de impostos esteja na ordem do dia. É verdade que
esse agravamento de impostos viola também o que o PS prometeu aos eleitores mas
desde o início de funções do actual governo se percebeu que a inversão das
políticas anteriores e a distribuição de benefícios pelos grupos e interesses
favoritos da “geringonça” implicaria o agravamento da factura apresentada aos
contribuintes. Nada de novo ou particularmente surpreendente nesta frente,
portanto.
Aquilo em que a exibição de
Mariana Mortágua numa conferência promovida pelo PS constituiu novidade foi a
forma como a discussão sobre o aumento da carga fiscal que se perspectiva foi
colocada. Com retórica mais própria de um assaltante à mão armada do que de um
parlamentar numa democracia liberal, a deputada Mortágua não podia ter sido mais clara nas instruções que deu à sua
audiência socialista: “a primeira coisa que temos de fazer é perder a vergonha
de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”.
Não é uma declaração
irrelevante porque o Bloco de Esquerda já não é apenas um partido de protesto
que integra vários movimentos de extrema-esquerda. Não é irrelevante porque com
a “geringonça” o BE – tal como o PCP – passou a ser um partido com influência
directa sobre a governação do país. Não é irrelevante porque a retórica
inflamada e revolucionária de Mariana Mortágua foi aplaudida pela audiência
presente na conferência organizada pelo PS e porque a liderança desse mesmo PS
não se demarcou de imediato dessas declarações (ainda que, honra lhes seja
feita, ainda resistem algumas vozes dentro do PS que o fizeram).
Mas Mariana Mortágua foi ainda
mais longe: proclamou bem alto a necessidade de uma alternativa ao capitalismo
e explicou que a causa da pobreza é a existência dos “ricos”. Queixou-se de que
as suas declarações foram distorcidas uma vez que taxar riqueza acumulada não
seria a mesma coisa que taxar poupança. Em sentido estrito, trata-se de uma
afirmação verdadeira: se a riqueza acumulada em causa for resultado de um crime
– por exemplo, de um assalto a um banco – não estamos perante poupança. Mas, no
contexto das actividades económicas lícitas, a acumulação de riqueza dá-se
precisamente por via da poupança.
O ataque de Mariana Mortágua
contra a poupança esconde por isso um outro julgamento: o de que a generalidade
da actividade económica no contexto dum sistema capitalista é intrinsecamente
ilegítima. Só isso justifica a condenação generalizada da acumulação da
riqueza. Juntem-se as declarações de Mortágua à afirmação por parte de Catarina
Martins de que comprar casa não é investimento e aos planos para dar acesso ao
fisco aos dados de quem tenha contas bancárias que superem os 50 mil euros e
ficamos com uma ideia mais clara das intenções e objectivos da “geringonça”
neste domínio.
Sinalizar que se pretende, em
última instância, expropriar por via fiscal as poupanças acumuladas pelas
famílias (sejam sob a forma de depósitos bancários, casas ou outras) não é
apenas economicamente irracional e financeiramente suicidário para o Estado
português na situação actual. É também sintomático do movimento de
radicalização da esquerda que a “geringonça” colocou em marcha. Já não se trata
“apenas” de uma questão de maximizar o saque fiscal no contexto de uma economia
de mercado com pesada intervenção do Estado. Com a “geringonça” a discussão
está gradualmente a mover-se para campos progressivamente mais radicais: trata-se
agora de colocar na ordem do dia da governação as ambições revolucionárias de
longa data da extrema-esquerda.
Em 2009, o socialista João
Galamba ainda se demarcava claramente das ideias, propostas e métodos da
extrema-esquerda: “É uma fantasia achar que se resolve o problema da
pobreza e das desigualdades criando um escalão de 45% de IRS e um imposto sobre
as grandes fortunas. Os nossos problemas também não se resolvem nacionalizando
a banca, os seguros e o sector energético — e muitos menos se resolvem
introduzindo mecanismos de controlo administrativo e burocrático dos juros. Em
tudo o que cheire a economia a solução do BE é sempre a mesma: estatismo e
penalização da iniciativa privada.”
Em 2016, o primeiro-ministro
António Costa já não tem qualquer pudor – Mariana Mortágua certamente terá
aplaudido a falta de vergonha – em descrever o seu modelo de sociedade usando deliberadamente terminologia marxista e o PS parece estar num processo
de bloquização acelerada. Pelo caminho, o PS atira para o caixote do lixo o seu
próprio legado na construção do actual regime democrático contra a mesma
extrema-esquerda revolucionária de que passou a depender para se manter no
poder. Um caminho que pode arrastar Portugal para um desfecho bem mais grave do
que um segundo resgate.
Título e Texto: André Azevedo
Lopes, Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade
Católica Portuguesa, Observador,
24-9-2016
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