No século XXI, a esquerda brasileira
ainda cultua a figura do caudilho latino-americano
Demétrio Magnoli
Foto: Marcelo Brandt/G1 |
No Citibank Hall, em São
Paulo, Caetano e Gil conduziram a plateia numa versão de “Odeio você” que se
completava com “Temer”. Há motivos para a indignação contra um governo recheado
das velhas figuras do PMDB, assentado no chamado “Centrão” e salpicado pela
gosma de preconceito dos pregadores-negociantes. Contudo, os dois músicos e seu
público não apenas rejeitavam o presidente adventício como também se solidarizavam
com a dissolvida ordem lulo-dilmista. O evento, um entre tantos que envolvem
intelectuais e artistas, evidencia a eficácia da narrativa do “golpe
parlamentar”. É mais uma volta no parafuso que prende a esquerda brasileira a
lideranças e ideias regressivas. O fracasso não ensinou nada — e apagou as
páginas de lições prévias.
Lula e Dilma, depois de tudo —
é sério isso? Os heróis da esquerda são os compadres de Marcelo Odebrecht, os
chefes dos gerentes-operadores da Petrobras, o óleo na engrenagem de um
capitalismo de subsídios e sombrias negociatas. Na ordem lulo-dilmista,
circulavam como aliados e associados os mesmos canalhas que rodeiam o atual
governo. O que eles “odeiam” não é a presença perene dessa gente, mas a
ausência de seus heróis sem nenhum caráter. O Temer que eles odeiam é a
implicação necessária dos governos que eles amaram.
No campo político da esquerda,
nada se aprendeu sobre uma política econômica amparada nas rendas
extraordinárias do ciclo internacional da “globalização chinesa”, que nunca
gerou ganhos de produtividade e se concluiu numa depressão tão profunda quanto
à do colapso cafeeiro. E nada se aprendeu sobre políticas sociais referenciadas
em estímulos conjunturais ao consumo e transferências diretas de renda, que se
esgotaram sem reformas de fundo. Enquanto ainda cantam as glórias petistas,
eles escondem de si mesmos a permanência de uma educação pública em ruínas e as
carências humilhantes dos serviços públicos de saúde. Eles gostam de cotas, não
de direitos universais.
O que sobra de uma esquerda
cega à desolação das nossas metrópoles cindidas em guetos sociais e, portanto,
estruturalmente violentas? Por que eles amam tanto o retrógrado Minha Casa
Minha Vida, um programa que ergue habitações populares distantes dos centros
das cidades, reiterando um padrão secular de segregação espacial? Copa, Jogos
Olímpicos, Porto Maravilha: a roda da fortuna da especulação imobiliária.
Numa mesa-redonda, Guilherme
Boulos, o líder do MTST, inverteu a sequência temporal dos eventos para justificar
a falência econômica da Venezuela chavista pelo colapso das cotações do
petróleo. A caravana do “Odeio você” avança, de olhos vendados, rumo ao
passado. Eles não reconhecem que, sob Hugo Chávez, somente se aprofundou a
histórica dependência venezuelana das rendas petrolíferas, nem que a “revolução
bolivariana” implodiu sob o peso de seus próprios erros, degenerando num regime
autoritário, repressivo e impopular. No século XXI, a esquerda brasileira ainda
cultua a figura do caudilho latino-americano.
Podemos ter nosso próprio Che?
Wagner Moura, cuja inteligência política é inversamente proporcional a seu
talento dramático, clama por recursos públicos para um filme sobre Marighella.
Ele quer cercar seu personagem com a auréola do romance, ajudando a convertê-lo
em marco de memória. A luta armada, o “foco revolucionário”, ofereceu os
pretextos ideais para a evolução da máquina repressiva, contribuindo
involuntariamente com a sedimentação da ditadura militar. À luz da história,
compreende-se o erro trágico dos militantes que se engajaram naquela aventura.
Já a romantização da tragédia, tanto tempo depois, e na vigência das liberdades
democráticas, deve ser classificada como o ato típico de um idiota.
Na Europa, as correntes
principais da esquerda aprenderam com a experiência totalitária soviética o
valor fundamental da democracia. Na América Latina, o percurso de aprendizado
foi interrompido pela Revolução Cubana, com seu infindável cortejo de mitos.
Cuba é o nome da caverna escura que aprisiona a esquerda brasileira. Um quarto
de século atrás, o PT chegou a qualificar o regime castrista como uma ditadura
indefensável. Hoje, celebra tanto o defunto “modelo socialista” cubano (isto é,
o estatismo stalinista) quanto as reformas econômicas deflagradas por Raúl
Castro (isto é, um sistema de mercado sem a contrapartida de direitos políticos
e sindicais). Nesse pátio de folguedos do anacronismo ideológico, encontra-se
com sua dissidência agrupada no PSOL.
“Odeio você, Cunha!”. A
performance da esquerda apoia-se num álibi primário. Eles dizem, com razão, que
Eduardo Cunha está no ADN do governo Temer. Porém, obliteram o fato de que, sem
a engrenagem da corrupção partidária institucionalizada sob o lulo-dilmismo,
Cunha seria apenas mais um corrupto de terceira classe. O ódio caetaneado, um
produto político seletivo, opera simultaneamente nos registros da memória e do
esquecimento. Cunha é Temer — mas é também Lula e Dilma.
Nos idos de junho de 1968,
interpretando “É proibido proibir”, Caetano desafiou uma plateia que urrava
contra as guitarras elétricas dos Mutantes, pateticamente identificadas ao
“imperalismo americano”. Hipnotizados pelo romance da esquerda
latino-americana, os jovens odiavam tudo que não fosse Vandré. O Caetano de
hoje representa a negação do Caetano original: no Citibank Hall, ele
arrependeu-se de si mesmo, curvou-se às vaias do passado, escreveu o epílogo de
uma biografia autorizada.
Pablo Milanés desempenhou, ao
longo de décadas, o triste papel de trovador oficioso de Fidel Castro. Caetano faz
uma melancólica imitação tardia, candidatando-se a trovador de Lula e Dilma.
Ninguém deveria odiá-lo por esse motivo. No fim, sua performance reflete os
fracassos e as frustrações de uma esquerda enclausurada na gruta de seus mitos.
O “velhote inimigo que morreu ontem” está entre nós, bem vivo.
Título e Texto: Demétrio Magnoli é sociólogo, O Globo, 22-9-2016
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