José Manuel Fernandes
O livro de Saraiva tem pouco valor histórico
e comete pecados graves, mas se queremos falar de jornalismo não devíamos estar
antes a discutir como o DN, o JN e a TSF são hoje usados por José Sócrates?
Não faço parte daquele grupo
de activistas das redes sociais (e de colunistas de jornal) que não se
envergonha de escrever “não li esse livro, mas…”, desatando a seguir a proferir
a maiores inanidades sobre o que não se conhece. Tratei por isso de ler Eu
e os Políticos, de José António Saraiva (com quem trabalhei nos anos em que
estive no Expresso, já lá vão três décadas), antes de escrever fosse o que
fosse. E devo dizer desde já que não alinho com a turba ululante. Passo a
explicar.
Eu e os Políticos é
um livro de memórias. Na verdade, é o terceiro livro de memórias do antigo
director do Expresso e do Sol. Antes escreveuConfissões de um Diretor de
Jornal [2003] e Confissões – Os Últimos Anos no Expresso, o
Nascer do Sol e as Conversas com Políticos à Mesa[2006]. Também li esses
dois livros. E, por isso, só posso ficar espantado pelo escândalo que agora se
levantou em torno de José António Saraiva ter revelado conversas privadas, pois
já o tinha feito nesses dois livros anteriores. Não o desculpo por isso, mas
interrogo-me: será que a turba de indignados só agora o descobriu? Por outro
lado, será que os políticos, que continuaram a almoçar com ele, não estavam
avisados?
Matéria diferente são as
passagens sobre a vida privada, até íntima, de alguns dos protagonistas.
Nalguns casos, são inúteis e de evidente mau gosto – que adiante para a
História, que Saraiva diz querer servir, saber que uma antiga secretária viu o
rabo de Medina Carreira quando este levava uma injecção ou que um antigo
namorado de Fernanda Câncio gostava de fotografias supostamente eróticas?
Noutros são muito discutíveis, e quando digo discutíveis não o faço
gratuitamente. Por exemplo: a orientação sexual de um dirigente partidário deve
continuar a ser um tabu em Portugal, como é na generalidade dos países latinos,
ou deve ser revelada (como Saraiva faz) como sucede na generalidade dos países
anglo-saxónicos? Onde está a hipocrisia? E onde está o voyeurismo?
De resto, não se aprende muito
com este livro, sobretudo para quem leu os anteriores, até porque alguns dos
episódios são apenas contados de novo. Aprende-se sim com a indignação selectiva
que ele suscitou.
Por exemplo: ao lê-lo fiquei a
saber que o jornalista do Expresso que cobria a Câmara de Lisboa era, numa
determinada fase, quase íntimo do então presidente da autarquia; assim como
soube que um outro jornalista do mesmo Expresso tinha relações de grande
cumplicidade com um dos mais controversos políticos portugueses. Nada disso
parece ter excitado os nossos “indignados”, porventura por esses dois
jornalistas já se terem reformado. Ou talvez não, pois infelizmente conheço
demasiado bem o corporativismo da minha classe para saber que também nela uma
mão costuma lavar a outra.
Expurgado de uma dúzia das
suas mais de 200 páginas o livro de Saraiva não teria levantado ondas e
serviria apenas, como ainda serve, para acrescentar pormenores ao retrato de
alguns políticos e da sua forma de actuar. Aí mantém algum interesse,
nomeadamente quando recorda a forma como há quem minta com a mesma
tranquilidade com que respira.
Mas adiante, que a onda de
indignação suscitada pela obra tem uma vantagem: revela como a hipocrisia é
moeda corrente entre nós. E como é fácil fazer tiro ao alvo contra alguém que
já não tem poder e ficar calado quando as coisas são muito mais graves mas
pode-se incomodar colegas e amigos.
Um bom exemplo daquilo a que
me refiro é o que se passa no grupo Global Media, um dos maiores do país e
proprietário do Diário de Notícias, Jornal de Notícias e TSF. A “indignação” de
alguns dos jornalistas-colunistas desse grupo com o livro de Saraiva foi
imensa. O que dá para ficar espantado, por causa dos telhados de vidros daquela
casa. Por isso desculpem-se ser desmancha-prazeres, mas num fim-de-semana
marcada pelo protagonismo político de José Sócrates não é possível continuar a
ignorar a passadeira vermelha de que continua a beneficiar naquele grupo de
comunicação. Mas vamos a factos.
Primeiro facto. Sabemos hoje,
graças à Operação Marquês, que José Sócrates teve um papel determinante na
transferência de propriedade daquele grupo em 2014, poucos meses antes da
prisão do ex-primeiro-ministro. A sua preocupação era controlar as direcções
dos dois jornais, tendo, através do seu amigo e advogado Proença de Carvalho,
defendido a nomeação de Afonso Camões para esses lugares. Esse jornalista,
amigo de Sócrates, chegou mesmo a definir-se como um “general prussiano”
que “não se amotina”, podendo ser um “joker” em qualquer posição de direcção. O
actual director do Jornal de Notícias é, de resto, um amigo de longa data de
José Sócrates, que o colocou em lugares tão importantes como a direcção da Lusa
e que contou com a sua colaboração noutras “operações” (aí, refira-se, o livro
de Saraiva revela alguns episódios curiosos sobre a acção de Camões que eu
desconhecia).
Mas sabemos mais. Sabemos que
Proença de Carvalho é hoje o homem forte da administração do grupo e que os
órgãos de informação da Global Media têm sido utilizados, com pouco ou nenhum
escrutínio, por José Sócrates para difundir as suas mensagens. Correndo o risco
de me falhar alguma intervenção, fiz um pequeno levantamento – pequeno mas
significativo:
27 de Novembro de 2014: Primeira mensagem
de Sócrates depois da prisão, divulgada pela TSF (e pelo Público);
4 de Dezembro de 2014: Carta publicada no
Diário de Notícias;
5 de Março de 2015: Carta escrita a
partir do estabelecimento prisional de Évora e entregue ao Diário de Notícias,
Jornal de Notícias e TSF, com críticas a Passos Coelho;
4 de Abril de 2015: Texto de opinião
publicado no Jornal de Notícias;
8 de Junho de 2015: Declaração exclusiva
ao Jornal de Notícias sobre a recusa de pulseira electrónica;
12 de Junho de 2015: Declarações enviadas
por escrito à TSF e ao Diário de Notícias;
30 de Junho de 2015: Entrevista conjunta
ao Diário de Notícias e à TSF;
19 de Agosto de 2015: Carta enviada ao
Jornal de Notícias (e à SIC);
19 de Junho de 2016: Texto de opinião
publicado ao mesmo tempo no Jornal de Notícias e na TSF;
26 de Junho de 2016: Texto de opinião na
TSF (não se encontram no site da TSF textos de opinião de mais nenhum político);
10 de Setembro de 2016: Texto de opinião
no Diário de Notícias;
16 de Setembro de 2016: Entrevista à TSF
sobre o juiz Carlos Alexandre.
Se a consulta dos arquivos não
me pregou nenhuma partida, para além destas intervenções José Sócrates só deu
mais uma entrevista nestes quase dois anos, a famosa (e controversa) entrevista
em duas partes à TVI.
No que diz respeito ainda ao
grupo Global Media refira-se ainda que os órgãos de informação que o integram
recusaram publicar a publicidade do Correio da Manhã em que se criticava uma
decisão judicial que, durante alguns meses, impediu aquele jornal de publicar
informação relevante sobre a Operação Marquês.
Estes dados indicam que aquele
grupo de comunicação tem servido ao ex-primeiro-ministro como plataforma para
defender as suas posições, com privilégios de acesso únicos, quase absoluta
ausência de escrutínio, tudo isto quando se sabe que ele interferiu, em 2014,
na escolha das direcções editoriais e que tem o seu amigo e advogado como
presidente do Conselho de Administração.
Contudo parece haver uma
espécie de “conspiração do silêncio” que não questiona esta situação, isto
enquanto fervem as indignações por causa de um livro que, na verdade, só põe
por escrito aquilo que todos sabem sobre a vida privada de algumas figuras públicas.
O povo pode gostar muito de mexericos (enquanto diz mal deles), mas certo,
certo, é que falar de mexericos é muito útil para não se falar de coisas
realmente importantes. E para mascarar a hipocrisia reinante.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
26-9-2016
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