Rui Ramos
A atitude atribuída ao presidente parece
derivar da ideia de que a melhor maneira de derrubar António Costa é deixá-lo
governar. É a velha teoria portuguesa de que, em certos casos, o poder
"queima".
Marcelo Rebelo de Sousa tomou
posse faz hoje seis meses. Desde Março, o presidente já esteve em quase todo o
lado, e expressou opinião sobre quase tudo. Curiosamente, tem sido uma
presidência mais comentada na imprensa cor-de-rosa do que nas colunas de
política. Mas o problema mais interessante diz respeito à percepção da relação
entre o presidente e o governo. Toda a gente parece convencida de que o
presidente não acredita no governo de António Costa, e até os ocasionais
elogios são interpretados como maliciosos avisos de cobrança futura. Ao mesmo
tempo, porém, ninguém parece esperar que o presidente diga ou faça alguma coisa
em público contra o governo. Porquê?
Talvez haja aqui, neste
aparente paradoxo, alguma consciência da tradição que diz que não compete aos
presidentes derrubar governos, e de que nas últimas décadas só Jorge Sampaio se
afastou. Mas há mais alguma coisa. A atitude atribuída ao presidente parece
derivar da ideia de que a melhor maneira de derrubar António Costa é deixá-lo
governar. É uma ideia que não serve só para dar conta do suposto procedimento
do presidente, mas também, até certo ponto, da oposição parlamentar. Donde é
que vem esta maneira de pensar? Que sentido faz?
É uma filosofia antiga.
Podemos detectar os seus traços nas origens da democracia, entre o colapso da
ditadura salazarista e o PREC – uma história que o presidente viveu e também
escreveu. Em 1968, os inimigos de Marcelo Caetano conformaram-se com a ideia de
ser ele o primeiro sucessor de Salazar, porque o primeiro sucessor seria para
“queimar”, dados os enormes problemas do regime. Foi o que aconteceu. Em 1975,
perante o PREC, Kissinger propôs-se deixar os portugueses experimentarem a
revolução comunista como “vacina” contra um radicalismo em voga na Europa
ocidental. E embora não se tenha ido tão longe como Kissinger estava disposto a
ir, a dose foi suficiente.
Todas as explicações da
atitude do presidente pressupõem esta sabedoria, que diz que em certas
condições “o poder queima” e pode ser uma “vacina”. No Portugal de hoje, a
economia estagnou e depende do BCE. O primeiro-ministro não tem condições, nem
para fazer reformas, nem para gerar confiança. Mas para quê afrontá-lo, quando
até já o Financial Times percebeu como isto vai acabar?
Alguém poderia argumentar:
para evitar o pior. Mas o actual governo é o resultado de um novo ambiente de
radicalização à esquerda, sem o qual, aliás, Costa não poderia ter comprometido
o PS com a “maioria” que o PCP advogava há quarenta anos. Resistir a essa
corrente, poupá-la ao fracasso, poderia reforçar o apelo das suas ideias. Não
será melhor deixar esgotar esta maioria, de modo a dar ao país motivos para que
nos próximos anos não volte a cair na demagogia?
Por detrás destes cálculos
políticos, não há apenas experiência histórica, mas cepticismo. Marcelo Rebelo
de Sousa faz parte da classe política deste regime, e é incansável em mostrar
“afecto” ao povo. Mas não confia na classe política nem no povo para serem
sensatos antes de terem esgotado o catálogo dos erros possíveis.
Este foi sempre um regime
inseguro e desconfiado, e por isso marcado, desde o início, por uma certa
fatalidade. Não devemos subestimar a sabedoria dos seus protagonistas. Mas
podemos, talvez, apontar-lhe os riscos. A vacina de Kissinger foi eficaz, mas
ainda a estamos a pagar, por exemplo numa banca sem capitais. Quando se deixa a
casa arder, nunca se sabe o que pode desaparecer no fogo. Mas por outro lado,
estes são, de facto, os primeiros seis meses de Marcelo Rebelo de Sousa. Uma
presidência tem história até ao último minuto. Lembram-se de Jorge Sampaio?
Quem diria, em 2004, ao fim de quase nove anos de enfático parlamentarismo, que
ia derrubar um governo com maioria no parlamento?
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
9-9-2016
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