Rui Ramos
O que importa ao humanismo politicamente
correcto são os sírios que na Alemanha podem ser alvo de um olhar menos
multicultural, não os que em Aleppo são triturados pelas bombas de Putin e de
Assad.
O Iraque provou que as
intervenções ocidentais podem ser um desastre. A Síria provou que as
não-intervenções podem ser um desastre ainda maior. Mais de cinco anos de guerra
fizeram, até agora, meio milhão de mortos e milhões e milhões de deslocados,
dentro e fora do país, com centenas de milhares de refugiados a entrar
clandestinamente na Europa. E não foi preciso George Bush, nem “Neo-Cons”.
Aleppo, sob as bombas, é hoje
o filme da imprevidência ocidental. Ao princípio, Barack Obama incitou a revolução síria. Depois, consentiu ao carniceiro
de Damasco que pisasse todas as “linhas vermelhas”.
Admitamos que inicialmente
houve ingenuidade: depois do Egipto e da Líbia, julgou-se que as tiranias eram
coisa fácil de empurrar. Lembram-se? Bastava ligação à internet: as revoluções
eram no Facebook. Por fim, percebeu-se que era um pouco mais
complicado. Apareceram então os mapas com o xadrez étnico e religioso do país,
e as análises dos equilíbrios de poder na região. Aí, toda a gente desistiu. A
guerra continuou.
Veio por fim a crise dos
refugiados. Diz-se que despertou a consciência ocidental. Não, ao contrário:
veio adormecê-la. As centenas de milhares de sírios que chegaram à Alemanha
serviram para fazer esquecer os milhões que ainda estão na Síria, cercados e
perseguidos pelos vários senhores da morte locais. Deixámos de falar da Síria
para passar a falar das nossas sensibilidades, das nossas eleições, das nossas
fronteiras.
Assad destrói os hospitais de
Aleppo, e nós discutimos o Tratado de Schengen. O que importa ao humanismo
politicamente correcto são as dezenas sírios que num bairro alemão podem ser
alvo de um olhar menos multicultural, não os milhares que em Aleppo estão a ser
triturados pelos aviões de Putin e pela artilharia de Assad. É como se fora das
fronteiras do Ocidente, os seres humanos não tivessem direitos.
A Síria é o segundo palco da nova guerra fria. Putin tirou as medidas aos ocidentais
quando anexou metade da Ucrânia. Agora, está determinado em oferecer um triunfo
ao seu cliente Assad na Síria. O Estado Islâmico cumpriu o seu papel de
justificar a ingerência russa. Entretanto, Putin vai-se tornando um grande
exemplo, já copiado dentro da própria União Europeia (na Hungria), e festejado
por Trump nos EUA. Mas a Rússia de Putin, como já foi notado, tem um PIB do tamanho da Itália, e em
declínio. A sua força consiste quase só na tibieza ocidental.
Estava então Obama errado?
Sim, do ponto de vista humanitário e diplomático; não, do ponto de vista da
política interna. Porque a moldura penal para o crime político por omissão é
muito favorável. No caso do Iraque, a decisão de remover Saddam e os desacertos
da ocupação militar causaram enorme controvérsia, justificaram marchas,
deixaram um rasto infindável de artigos, livros e filmes. Sobre a Síria, não há
nada. Bush pagará sempre pela “ invasão do Iraque”; Obama nunca responderá
pelos massacres que deixou acontecer na Síria. Para um presidente Americano, a
lição é clara: é sempre preferível lavar as mãos.
Estou a dizer que deveríamos
fazer outro Iraque? Não, mas o contrário de fazer uma coisa não é não fazer
nada. A marcação de “zonas de segurança” na Síria, para acolher a população
civil, teria sido possível e poupado muitos sofrimentos. Mas sim, teríamos tido
logo passeatas contra a “guerra imperialista”. Marx dizia que os acontecimentos
se repetiam: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Mas há acontecimentos
que não precisam de se repetir para serem farsa e tragédia ao mesmo tempo. A
Síria é um deles. Um dia, há de ser uma vergonha ter sido contemporâneo desta
guerra.
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