José Manuel Fernandes
É preciso ser claro: o que o Bloco tem
dito sobre saúde e os serviços prestados ao SNS por empresas privadas é um
disparate baseado no preconceito. E que pode sair caro aos doentes e aos
contribuintes
Tomemos a seguinte frase,
dita recentemente no plenário da Assembleia da República: “Não podemos
continuar a canalizar centenas de milhões de euros para privados quando esse
dinheiro faz tanta falta ao nosso SNS. Não podemos gastar 450 milhões de euros
por ano em PPP na saúde. O orçamento da saúde não pode ser uma renda para
negócios privados”.
Vou ser sincero: é difícil
concentrar tantos disparates em tão poucas linhas. Pior: quem assim fala ou é
ignorante, ou é demagogo, ou é as duas coisas ao mesmo tempo, o que é o mais
provável. Com a agravante se falar assim por dogmatismo ideológico e
oportunismo político. Pior era impossível, e rapidamente veremos porquê.
Primeiro, identifiquemos o
deputado: Moisés Ferreira, do Bloco de Esquerda. Não o conheço, nunca me cruzei
com ele, sei apenas, consultando o site da Assembleia, que é psicólogo e
formador. Não posso avaliá-lo senão pelo que disse – e o que disse é inominável
e só passa relativamente despercebido porque o Bloco beneficia de uma excessiva
tolerância na comunicação social.
Depois, vamos por partes.
Tomemos a frase: “Não podemos
continuar a canalizar centenas de milhões de euros para privados quando esse
dinheiro faz tanta falta ao nosso SNS”. Nada nela faz sentido, pela simples
razão que esse dinheiro é aplicado no SNS precisamente porque os hospitais PPP
fazem parte do SNS. Quando um doente entra no Hospital de Braga, ou no de
Cascais, ou no de Loures, ou no de Vila Franca de Xira, é tratado exactamente
da mesma forma do que se estivesse a entrar no Hospital de São José em Lisboa,
no São João do Porto, no Garcia de Orta em Almada ou no Fernando Fonseca na
Amadora (muito provavelmente até é melhor tratado, mas já lá vamos). Tem os
mesmos direitos, merece a mesma atenção, paga ou não paga a mesma taxa
moderadora. Aqueles são hospitais do SNS, ponto final parágrafo. Será que
Moisés Ferreira o ignora? Será que nunca ninguém do Bloco passou por uma dessas
urgências ou foi lá a uma consulta externa? São assim tão poucos e tão snobs?
Creio que Moisés Ferreira sabe
muito bem que esses hospitais estão integrados no SNS. Como também sabe que o
dinheiro que o Estado paga aos privados com quem contratou a sua gestão é o
pagamento de um serviço, negociado doente a doente, patologia a patologia. Se
essas “centenas de milhões de euros” não fossem pagas aos privados que prestam
esse serviço público de saúde, então milhares de doentes teriam de ser
atendidos noutros hospitais (que não existem) e custariam ao Estado não as
centenas de milhões de euros hoje gastos nessas PPP, mas essas mesmas centenas
de milhões de euros mais um 20% de custos acrescidos.
Duvidam? Não duvidem: leiam o
que diz o Tribunal de Contas. É uma leitura completa que faria bem a Moisés
Ferreira, mas eu ajudo com um resumo. O documento a que me refiro é a recente Auditoria à execução do Contrato de Gestão do Hospital
de Braga em Parceria Público-Privada (está online, senhor deputado, é só descarregar da
Internet). Vamos então lá ver se nesse hospital – um daqueles em que a parceria
terá de ser renegociada em breve e que o Bloco quer acabar “porque sim” – o
Estado está a delapidar o tal dinheiro dos contribuintes que faz falta ao SNS.
Passo a citar o Tribunal de Contas:
O novo Hospital de Braga em
regime de PPP, que substituiu o antigo Hospital de São Marcos, em 2009,
aumentou a oferta de cuidados de saúde à população.
A gestão do Hospital de
Braga tem sido eficiente na utilização dos recursos: o custo operacional por
doente padrão foi, em 2015, de € 2.158, o mais baixo entre todos os hospitais
do SNS; o financiamento atribuído pelo Estado ao Hospital de Braga, por doente
padrão, foi em 2015 de € 2.084, o mais baixo entre os hospitais de gestão
pública selecionados para comparação.
Não se prevê que a
sociedade gestora do estabelecimento venha a ser remunerada até ao terminus do
atual contrato (2019).
A monitorização dos
parâmetros de desempenho do Hospital de Braga nos aspetos de qualidade e
segurança dos cuidados prestados é mais exaustiva e exigente do que a praticada
nas unidades hospitalares de gestão pública do SNS.
Ou seja: o Hospital de Braga é
um bom negócio para o Estado, que nele poupa dinheiro e consegue melhor serviço
do que nos hospitais do SNS de gestão pública.
Reparos? Claro que os houve:
“A produção de cuidados hospitalares acordada anualmente entre o Estado e o
parceiro privado não se tem subordinado às necessidades de serviços de saúde da
população, conduzindo ao aumento das listas e dos tempos de espera para
consultas e cirurgias” porque “o parceiro público tem subordinado o volume de cuidados
hospitalares prestados aos utentes às restrições orçamentais.” Trocando por
miúdos: o Estado não tem querido contratualizar mais cuidados de saúde e o
grupo privado (neste caso, a José de Mello Saúde) não tem querido ter mais
prejuízos, pois dificilmente os recuperará até final do contrato.
Aqui está portanto a “renda”
que, segundo o nosso iluminado do Bloco de Esquerda, o Estado está a entregar
aos privados: um hospital a operar desde 2011 em situação de falência técnica e
que só sobrevive – e volta a citar o Tribunal de Contas – graças “à injeção de
capital pelos acionistas para cobrir os défices anuais de tesouraria”.
Detalhe que falta: e então a
qualidade? A poupar tanto dinheiro por doente, por certo que a qualidade dos
serviços médicos se ressente – ou não? A resposta é não, bem pelo contrário.
Agora já não recorro ao TdC, mas à Entidade Reguladora de Saúde (ERS), que
desenvolveu um Sistema, o SINAS, que avalia a qualidade dos estabelecimentos
prestadores de cuidados de saúde em cinco dimensões: excelência clínica,
segurança do doente, adequação e conforto das instalações, focalização no
utente e satisfação do utente. (também pode consultá-lo online, senhor
deputado, fica aqui o link). Ora de acordo com os dados mais recentes desse
sistema o Hospital de Braga é o que aparece no topo da “excelência clínica”.
Isso mesmo: no topo. E, azar dos azares, em segundo lugar vem outro hospital em PPP, o de Vila Franca de Xira.
Na verdade nem estes dados,
nem estas contas, deveriam surpreender quem segue com um mínimo de atenção o
que se passa neste sector. Há poucas semanas dois estudos realizados pelo Centro
de Estudos Aplicados da Faculdade de Economia da Universidade Católica tinham
chegado a resultados muito semelhantes.
O estudo de avaliação do Value
for Money da PPP do Hospital de Braga (que também está online) concluía que este contrato “é
amplamente positivo [para o Estado] e representa uma poupança entre 15% a 22%
do custo que teria gerir o hospital por uma entidade pública”, sendo que os
autores do estudo acrescentam que “há um conjunto de fatores que nos levam a
acreditar que esta estimativa peca por conservadora”.
Já o estudo feito à PPP do
Hospital de Cascais (aqui online, eu ajudo o senhor deputado) – aquele que o
ministro da Saúde entendeu não
renegociar, antes abrir um novo concurso internacional – chegou à conclusão que
esta unidade gerida pela Lusíadas Saúde “tem gerado um Value for Money para
o Estado português muito substancial, avaliada em 24% dos custos que o Estado
teria suportado com gestão pública.” Curiosamente acrescentava-se que “essa
poupança deve ser tida em conta nas decisões de políticas públicas de saúde na
área hospitalar”, um conselho que faz pensar sobre a decisão do Governo de não
tratar já de renegociar esta PPP.
Mas o mais extraordinário é
que, face a esta notícia, o mesmo deputado resolveu tornar o disparate ainda
mais superlativo, declarando que “no SNS não podemos ter entidades que
visam taxas de rendibilidade da ordem dos 10% e distribuição dos lucros pelos
acionistas”. Ou seja, o Estado poupou em quatro anos 200 milhões de euros nas PPP dos
hospitais de Braga e Cascais, mas aparentemente nada disso interessa por haverá
em Cascais uns funcionários a recibos verdes que preocupam mais o deputado
Moisés Ferreira do que a poupança para os contribuintes e a vantagem no serviço
para os doentes. E quantos há nos hospitais com gestão pública? Saberá ele
quantas horas faz aí, por semana, um médico interno?
Chegados aqui, perguntar-se-á:
como pode um deputado abalançar-se a tanto desvario? Bem sabemos que, para as
gentes do Bloco, há muito que a pós-verdade é a sua forma natural de estar, tal
como sabemos que isso não lhes é cobrado
pois são provavelmente a força política menos escrutinada nos jornais e
televisões. Mas para chegar a este ponto é necessária a cegueira própria de
quem decorou uma cartilha anti-capitalista e a debita sem sequer pensar. Até o
PCP tem hoje mais cuidado, como se verifica na forma como, também se opondo às
PPP na saúde, não maltrata tão grosseiramente a verdade. Raras vezes se fala
das fixações ideológicas do Bloco, mas é bom não esquecer que se sentam à
esquerda do PCP no hemiciclo por escolha própria. O radicalismo e o extremismo
fazem mesmo parte da sua natureza.
Mas nestas declarações há
também uma demagogia populista que em nada desmerece a de Trump, ou de
Iglésias, ou Beppe Grillo, ou de Marine Le Pen. Quando Moisés Ferreira diz que
“o orçamento da saúde não pode ser uma renda para negócios privados” está a jogar
na confusão e na mistificação. Ele sabe que as PPP têm má imagem em Portugal,
por causa das PPP rodoviárias e ferroviárias, pelo que trata de meter tudo no
mesmo saco. Ele também sabe que falar de “rendas de privados” é tocar num nervo
sensível que suscita a imediata indignação. O facto de na saúde não existirem
rendas privadas mas prejuízos privados, e de as PPP terem aqui uma natureza
muito diferente das do sector dos transportes, é-lhe absolutamente indiferente.
Para a opinião pública, só lhe interessa a frase grandiloquente. Para a vida da
geringonça só lhe importa colocar pressão sobre o PS. Sem ela o Bloco perde
sentido como partido radical, tal como sem ela perde utilidade para os
eleitores, que deixam de o distinguir do PS.
Sendo assim, vale tudo. Mesmo
a enorme desonestidade da frase com que abri esta crónica.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
12-1-2017
Marcação: JP
É a força política menos
escrutinada por uma razão cristalina: sua meia dúzia de militantes e
simpatizantes está nas redações dos jornais, revistas e televisões.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-