Paulo Tunhas
Eastwood lembra que hoje em dia toda a
gente caminha sobre cascas de ovos, com medo de as partir. O policiamento total
e perfeito da linguagem e dos sentimentos torna o mundo invivível.
Às vezes uma pessoa apanha-se
com um grande horror à subjectividade, sobretudo quando ela invade tudo e quer
tomar conta dos momentos todos da nossa vida. Vem lírica e pesada, fardada de
bons sentimentos e obrigatória, muito viscosa, a dizer-nos que devemos ser
desta maneira e não ser daquela, que devemos sentir isto e não devemos sentir
aquilo, que devemos pensar aquilo e não aqueloutro, sem que a gente lhe tivesse
encomendado qualquer sermão. Convém nestes casos sacudi-la da roupa e procurar
alguma objectividade, que é onde podemos encontrar a maior liberdade. Por onde
é que ela anda?
Graças a Deus, anda por muitos
sítios. No outro dia descobri-a numa entrevista à Esquire, de há
meio ano, de Clint Eastwood e do seu filho Scott. O crítico literário inglês F.
R. Leavis, eminentemente influente em meados do século passado, recusava-se a
atribuir grande importância literária a romances em que a questão das decisões
morais não fosse, de uma maneira ou de outra, central. Por estranho que pareça,
é possível que no cinema isso seja ainda mais fundamental do que na literatura,
e os filmes de Clint Eastwood vivem todos no elemento desse tipo de escolha.
Mesmo aqueles, não por ele realizados, do Dirty Harry, que a muito
estimável Pauline Kael com grande estupidez chamava “fascistas”.
Eastwood, a propósito do seu
último filme, Sully, que quero mesmo ver, lembra que hoje em dia
toda a gente caminha sobre cascas de ovos, com medo de as partir. O
policiamento total e perfeito da linguagem e dos sentimentos torna o mundo
invivível. É com esta reserva céptica em relação aos modos mediaticamente
dominantes do nosso tempo que ele encara Donald Trump. Sem excessiva simpatia,
mas com alguma compreensão. Nomeadamente face às acusações de racismo, que
considera tontas. Para ele, Obama foi péssimo, inteiramente divorciado das
pessoas. É bem possível que tenha toda a razão. Eu, pelo menos, cada vez mais
penso assim.
Clint Eastwood é, à sua
maneira, um cineasta da objectividade trágica. Alguém comparou o díptico The
Flags of Our Fathers / Letters from Iwo Jima aos Persas de Ésquilo.
Guardadas as devidas proporções, a comparação parece justa. Trata-se, nos dois
casos, de encontrar espaço para o ponto de vista do outro, de o poder albergar,
de tentar experimentar os seus sentimentos e o seu modo de ver. É um bom modo
de nos defendermos da embaraçosa e tirânica infantilidade da subjectividade e
de ganharmos alguma liberdade.
O que nos pode levar a um
génio infinitamente maior, ao Tucídides da História da guerra do
Peloponeso. Outra vez a objectividade, mas desta vez naquele que é
verosimilmente o maior livro de história jamais escrito. Ninguém foi nunca como
ele capaz de escrever história que estivesse a tal ponto próxima de nós, e
relê-lo é assistir a um milagre sempre renovado. Encontramos tudo, sob uma
forma tão definitiva quanto é possível.
A natureza da democracia, na
oração fúnebre pronunciada por Péricles, com a célebre menção ao respeito pelas
diferenças individuais. O risco do aventureirismo político e militar, na
deliberação que precedeu a fatal (para os atenienses) expedição a Siracusa: é
Alcibíades, o aventureiro, que persuade, contra os sábios conselhos de Nícias,
a assembleia. A demagogia populista (ou uma das suas várias formas) no discurso
de Cléon, opondo a mítica justeza do homem da rua ao fatal erro da gente
educada. A real e efectiva natureza do poder, tal como explicada pelos
embaixadores atenienses à ilha de Milos: o padrão da justiça depende da
igualdade da capacidade de compelir pela força. E a desagregação dos valores,
nos seus mais ínfimos e fundamentais detalhes, provocada pelas grandes
catástrofes: políticas, como os conflitos em Corcira (Corfu), ou naturais, como
a peste.
Nunca ninguém como Tucídides
nos mostrou de forma tão clara e evidente a natureza e o modo de funcionamento
das paixões políticas, fora de qualquer retórica empolada ou emoção forçada.
Lê-lo é, literalmente, uma libertação. Relê-lo é experimentar para lá de
qualquer dúvida que essa libertação não é imaginária. Uma cura de sanidade
mental.
Falei de Eastwood e de
Tucídides porque têm sido bons amigos meus por estes dias. Mas tudo o que nos
possa libertar do delírio ambiente é bem-vindo e há muita coisa que serve para
o efeito. Em geral, tudo o que nos permita ver o mundo com os olhos o mais
possível limpos de preconceitos. A experiência da liberdade encontra-se mesmo
mais na busca da objectividade do que na tirania da subjectividade. E é liberdade
que a gente quer, não é?
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador, 12-1-2017
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